quarta-feira, 19 de dezembro de 2007






O filme de estréia do diretor Orson Welles é, ainda hoje, 66 anos após seu lançamento, uma das obras mais influentes, e talvez por isso, controversas e debatidas nestes mais de 100 anos de história do cinema.
Aclamado por muitos como o melhor filme já produzido, qualquer abordagem crítica exige uma postura que se esquive tanto de uma bajulação ingênua e estéril, quanto de ataques inconsistentes e arrogantes – tendência atual de uma crítica cinematográfica cada vez mais acadêmica, despreparada e empertigada.
Um importante passo a ser dado rumo a uma interpretação mais madura da obra se consolida a partir da compreensão de que as várias inovações técnicas e estéticas advindas com “Cidadão Kane” não podem ser avolumadas – como o fazem alguns críticos e estudiosos que insistem em reduzir o filme a um exercício de virtuosismo cinematográfico. Ora, tais inovações são, tão somente, o meio instrumental para a consecução de algo maior, que seja: a grandiosidade humana que se desprende de cada fotograma. Somente desse modo “Cidadão Kane” se dimensiona na plenitude das suas virtudes e das suas limitações, como, aliás, toda obra de arte: intrinsecamente magnânima e doente.
“Cidadão Kane” narra a jornada de um jornalista na busca pelo significado da palavra proferida pelo milionário Charles Foster Kane segundos antes de morrer – “Rosebud”. Assim, através do mistério encerrado na impenetrável palavra, assistimos à reconstrução da sua vida desde a infância, com o evento que seria determinante na constituição psicológica do homem que viria a ser, até a morte – uma das mais chocantes da história do cinema, tamanha a solidão e a indiferença contidas no único gesto desencadeado por ela: uma anônima empregada que cobre seu corpo com um lençol numa noite particularmente soturna e silenciosa.
Orson Welles defere um duro golpe em duas instituições depositárias do mais arraigados valores americanos: a imprensa e a adoção irrestrita do ideário capitalista – ainda que, em nenhum momento, as críticas sejam balizadas por um viés político, mas sempre por um consciencioso humanismo. Através do “jornalismo marrom” que Charles F. Kane implanta ao assumir o jornal “Inquirer”, Orson Welles traça um sombrio retrato acerca das inumeráveis maquinações políticas e da permeabilidade a interesses escusos que se entrincheiram nos recônditos das redações dos jornais de grande circulação e penetração pública.
Charles F. Kane é sorvido progressivamente por uma solidão que enfatiza o processo de desintegração sócio-familiar desencadeado por sua imersão na esquizofrênica ordem capitalista que se expandia com a recuperação econômica dos EUA no período da 2ª grande guerra. Kane é o arquétipo do empreendedor americano, a reificação absoluta do “self-made man”. E na inexorabilidade do seu desejo de acúmulo financeiro e de poder, Kane assiste ao desmoronamento das suas relações sócio-familiares. Porém, curiosamente, o conteúdo demasiadamente shakespeariano da tragédia pessoal de Charles F. Kane impede que a mesma se restrinja à miséria da realidade americana.
Assim, para além da renovação estética do expressionismo alemão, da inovação na construção narrativa, da revolução técnica da linguagem cinematográfica, ergue-se soberana uma grande história humana, provinciana e universal como toda obra de arte. Para que escapemos, astutamente, da frieza e do esquematismo tacanho das análises puramente técnicas de “Cidadão Kane”, basta que lembremos da lição do grande mestre Roland Barthes acerca do prazer do texto: o mínimo de saber com o máximo de sabor. Assim “Cidadão Kane” deve ser fruído.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Uma arte de somas


David Conenbergue, usualmente e simplistamente conhecido por realizar filmes “bizarros”, certamente de rótulos desse tipo corre quando se trata de Marcas da Violência. A rigor, toda sua obra se sustenta por uma rara inquietação, por buscar aquele lado pouco comentado da relação do homem com a cultura (os médicos de Gêmeos, o cientista de A Mosca,...) Marcas da Violência seria, então, um filme mais convencional? De maneira alguma. Cronenbergue opta, dessa feita, por apontar o diferencial inscrito no mesmo, a violência como algo tão “natural” e constituinte da cultura, que quando se manifesta de forma um pouquinho mais óbvia, chega a incomodar, a despertar um mal estar. Esse mal estar em grande parte advém de uma recusa da chamada civilização do “sonho americano” em assumir que suas bases estão fincadas em grande parte em atos de violência. Temos um lar e um empresário que termina, em dada ocasião, em se revelar mais brutal do que o habitual de sua dia-a-dia como forma de defender a extensão de sua propriedade, seu negócio.
Estaremos, a partir daqui, diante de um homem aparentemente com dupla identidade e com uma história cindida em duas partes, em dois tempos: uma com histórico de crime e violência e outra, como cidadão pacato de uma comunidade. Cronenbergue nos mostra que não existe cidadão estritamente convencional, ”comum” e que violência e civilidade estão em pleno acordo como essa camada formadora de uma cultura. Trata-se, no fim das contas, de um western com roupagem nova, algo mais contemporâneo e essa obra fincada nas bases de um gênero tão americano (embora universal), demonstra-se também pela destreza nos cortes, pelo tom direto no qual se afirma um mito nascedouro de formação, a extrema concentração e concisão a todo tempo, a poesia das paisagens discretas... Por outra, há o ajuste de contas do protagonista com seu passado como forma de fazer por merecer o Graal do espírito, o galhardão que lhe permita inserir-se num tempo e espaço além do passado, etc. Dessa forma, Cronenbergue “estuda” uma cultura imergindo nas leis mais básicas de formação de suas raízes, por meio da linguagem que propiciou seu desenvolvimento e estruturação universalmente.
Notemos que as cenas de sexo carregam uma expressividade de grande rubustez e pulsão, o instante em que o filho do protagonista reage a um excesso de pressão de um “colega” de escola de maneira atavicamente análoga ao pai com o momento memorável em que o pai lhe chama a atenção, dizendo algo do tipo “aqui nós não resolvemos as coisas a pancadas”, ao que o filho responde “é, aqui nós resolvemos a bala”, ao que se segue um tampa na cara do pai no filho, em que esse deixa a sala todo pungido, enquanto aquele, igualmente pungido, se defronta com a culpa demonstrada em pouquíssimos segundos pelo diretor. Aliás, toda essa pequena cena é uma aula de concisão nesse mundo de significados expostos. E não podemos nos esquecer também do momento no bar em que um amigo do protagonista conta que seu casamento se iniciou com uma garfada inserida por uma mulher em seu corpo.
Estaremos, pois, diante de uma arqueologia? Penso que sim, de uma arqueologia que se interessa, sobretudo, pelo estudo dos gestuais, dos rostos diretos,por vezes ambíguos, e, em última instância, pelo humano, demasiado humano, como atesta o memorável final. Por outro lado, em nenhum momento podemos dizer que há no filme um elogio à violência. Os rostos afetados por balas são captados em closes quase congelados, revelando, ao contrário dos brinquedos de Tarantino, um forte teor moral. Mas o que há, sobretudo, é cinema em altas doses, com o homem, da forma mais exata e concentrada possível, em sua constituição com o espaço ao seu redor e sua relação simbiótica com os objetos a seu alcance.
Marcas, afinal, é um filme que está sempre à margem do roteiro e nega toda classificação. Filme convencional? Não. Elogio da violência? Pelo contrário. Crítica da barbárie?Não, exatamente. Existem formas que se provam, que se evidenciam como “fatos brutos” vivos e um entorno que reage a isso,seja ética,seja emocionalmente. Pois há altas cargas de emoção, sobretudo ao final quando a família ultra - discretamente aceita o homem de volta: a filha pequena arruma o prato do pai na mesa, o filho timidamente coloca o prato de comida próximo a ele e, por fim, sua esposa lhe fita com olhos molhados sem comunicar explicitamente de seu perdão, mas ele está lá. Faz-se necessário agora crescer, amadurecer esse amor, diz a cena da forma mais lacônica e delicada, o que justifica sua filiação ao western, pois ora, se trata aqui das mesmas virtudes de um John Ford, muito embora a robusta tonalidade do restante da obra em seu confronto com o mundo me faça pensar muito em Hawks(o que novamente ratifica o aspecto de “gênero”).
Entre o peso do corpo nas tarefas, que é viver (Hawks) e o peso do sangue e das raízes (Ford), reside aquele equilíbrio - desiquilíbrio constitutivo no corpo das relações homem/cultura, típico ao enigma Cronenbergue.Dessa soma, resulta o fascínio exercido por Marcas da Violência.
Alessandro Coimbra

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Notas sobre Peixe Grande,de Tim Burton




Um ótimo artista não precisa relatar o “mundo tal como é” para ser relevante.Essa realidade que muitos procuram aparecem das maneiras mais insuspeitas.Em um sonho, por exemplo.Para Tim Burton, o cinema é um criador de mundos.Toda a realidade é filtrada pelas visões de um homem.No seu caso, de um artista.
A história de Peixe Grande pouco importa.Para esse filme, o que conta é saber reconhecer uma imagem bem concebida e pessoal.A maioria das imagens desse filme existe na cabeça dos personagens, como memória ou como visão.
Alguém parece ter ensinado a Burton que o real só passa a existir a partir de algo subjetivo, que é o olhar humano.Em Peixe Grande o olhar é tudo.Não é a fantasia que se encaixa na realidade.O mundo real é que deve apreender o olhar, porque todo real existe sob a visão.Romântico?Visionário é uma palavra que se encaixa melhor.
Nesta obra, o onírico e a realidade são interdependentes, assim como o “homem comum” precisa daquele que não o é, e vice-versa.A comunhão desenvolta de ambas as dimensões é uma das temáticas desse filme.O real precisa do imaginário.O imaginário do real. E no fim, atravessa-se as linhas e aquilo que aparecia como sendo mera quimera ou imaginação é, de fato, a instãncia mais concreta,como o ponto privilegiado dessa encruzilhada de intercâmbios, dos encontros mais insuspeitos:os tais "personagens da imaginação" comparecem ao enterro do protagonista como seres de carne e osso.Portanto, quem afinal "traiu a realidade".Nós,durante o filme todo?
Com o término da obra, ficamos com fortes imagens na cabeça.Imagens essas, produto da extrema originalidade de um diretor, que consegue ser um demiurgo,um criador de mundos, mesmo se tivesse que contar uma história convencional e sem magia. Mas essa magia está no mundo interno de cada personagem concebido como memória ou como visão projetada. Seja o estranho artista de circo, seja o gigante atrapalhado, seja a bruxa humanizada, a bela garota-bela mulher, o poeta das falcatruas e,sobretudo,as gêmeas siamesas...Todos eles,às bordas do mundo, da tela, são necessários entre si e para o protagonista, no centro das "construções", o mais comum dentre eles, conferir sentido às coisas dadas.
Sem a criação, e nesse caso ela é a conseqüência, como já foi dito, de um mundo muito pessoal e sensível, não há real que se legitime. É preciso um filme desses para embaralhar nossa visão das coisas, como esse lugar privilegiado onde os imbricamentos se rompem, o estanque se parte e encontramos,por fim, a natureza particular, por vezes híbrida e imprevista de dados da vida.
Peixe Grande é a arte que surge pelos poros da indústria sempre óbvia.É o mundo das visões como profissão de fé em irmandade com a vida. Agora, a vida só pode deixar-se contaminar pelo olhar de Tim Burton. E a indústria também.
Alessandro Coimbra

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Trama dos Desenganos


O Desprezo é de certa forma, uma unanimidade quando se trata da obra de Jean-Luc Godard. Um filme que se sustenta por diversas babéis e formas expressivas e que não deixa ainda de ser um “filme político”, à sua maneira, à maneira do franco-suíço. Político por qual motivo?Por mostrar um roteirista que praticamente entrega sua obra (sua esposa) nas mãos de um produtor cínico e prepotente, com delírios de grandeza. Sim, neste filme há de uma forma discreta e modernamente laica, a visão do “pacto de Fausto” transportado para o ambiente dos jogos de forças que regem as relações entre arte e mercado. O diferencial é que Picolli, o roteirista, acaba não recebendo nada em troca, apenas uma consciência desenganada.
Como já dito aqui, trata-se de um homem moderno que é conivente que a questão monetária fale sempre mais alto, afinal ele não queria realizar o filme em questão, mas acaba decidindo por fazê-lo para atender aos caprichos da esposa(Brigite Bardot). Contudo, no momento mesmo em que opta por entrar no projeto, ele também a perde(ironicamente), como se já soubesse que isso tragicamente ocorreria.As relações de força desse mundo parecem estar além do indivíduo que é apenas uma peça frágil da engrenagem.
Mas o principal é que Fritz Lang, o grande diretor alemão, será quem refilmará a Odisséia e, para tanto, apostará nos valores clássicos da grande obra de Homero. Valores esses que se chocam com esse “novo mundo”, o que faz com que esse roteirista, ao contrário do herói Ulisses, não se reconheça na obra. O homem moderno ou contemporâneo é hesitante, neurótico e, por vezes, até mesmo covarde. É, dessa maneira que ele entrega Camile, quase generosamente, para seu produtor, recusando a luta contra os Deuses do Olimpo, renunciando assim a uma batalha em que poderia afirmar sua alma, seu espírito. E é essa mesma ausência de postura que gera o tal desprezo em Camile.
Os Deuses do Olimpo nos fitam todo o tempo em O Desprezo. Fitam a obra, o espectador, o roteirista de uma forma um tanto melancólica, como uma parte humana nossa que lamenta a ausência de um combate. O grande achado de Godard consiste em transformar as imagens (e a trilha) numa longa e infinita meditação poética sobre esse hiato espiritual. O filme é expressivamente perfeito e até elegíaco, como se o cinema devesse filmar a morte de certo classicismo, de certo cinema e também de certo paradigma de homem, que se encontra agora entregue à sua própria fragilidade, à instabilidade do tempo e à supremacia de "Mamon", o Deus do império monetário.
Como encontrar tanta beleza rara, afinal por se tratar mesmo de um filme de uma poesia tão avassaladora? Na possibilidade, penso eu, de aproximar tempos tão distantes (o clássico grego e o atual), de vasculhar o eterno “perdido” que há entre eles. Por uma busca nesse hiato espiritual, através de um diálogo impossível para o casal em crise, mas afinal possível para o cinema, como atesta a tomada final, em que Lang filma no silêncio o infinito das paisagens ao sol, numa imagem que não se sustenta e termina por se apagar aos nossos olhos como um sol que nos "cega".Como bem disse o próprio Godard a respeito desse filme: "Cada um interpreta o outro por sua própria ótica,mas o cinema os reinterpreta"(eu aqui, parafraseio).
O Desprezo, um filme de iluminação solar passado grande parte do tempo no espaço da ilha de Capri,com seus raios,lança clara e contundente luz sobre os desenganos da História, sobre nossos próprios desenganos no e através do tempo.Resta-nos a poesia da procura nesse além do tempo, no que escapa à atenção de Lang, do produtor e do roteirista, dos feitores do filme dentro do filme. É aqui que o cinema de Godard se afirma como uma prece.
Alessandro Coimbra

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Grandes lembranças


Não, eu não revi por essas semanas, mas este filme me provoca grandes lembranças, "dejá vus" eternos. O cinema americano passava por uma revisão nos anos sessenta e, mesmo assim, Bonequinha de Luxo apostava em certo classicismo e teor romântico, embora cheio sim de deslocamentos, de fluxos imprevistos dos mais originais. Dizer que é o melhor filme de Audrey Hepburn é pouco, tanto quanto admitir que é o melhor trabalho do diretor das panteras cor-de-rosa Blake Edwards.
O que primeiramente me saltava e ainda salta à memória é o tom um tanto irônico, cheio de ambivalências lingüísticas frente ao arrivismo e às frivolidades. Mas, nem por isso, a encenação abandona sua sintonia com Audrey, o encanto das canções de Henri Mancini. Essas canções merecem um capítulo à parte, pois as cenas pareciam construídas em função da música, como se estivéssemos diante de um musical, o que esse filme, pela cadência, não deixa de ser, quanto pela disposição de colocar os corpos e as cores em trânsito e pacto com uma dimensão das mais insólitas.
Escritor gigolô conhece garota de programa. A partir desse fiapo de história, Edwards compôs uma fábula moral em chave de comédia romântica, em que o que conta não é o moralismo fácil, mas a disposição dos protagonistas de assumirem seus destinos, suas vidas.O tom do filme encontra-se nesses constantes vai e vens entre o que há de mais ácido e o que há de mais lírico, muitas vezes ambos num mesmo momento, numa mesma cena(o que ainda é originalíssimo), o que remete a outro grande clássico do cinema do mesmo período, chamado Se meu apartamento falasse( Billy Wilder) e a certos trabalhos de Almodóvar.
Pode ser colhida de minha memória a percepção de um aproveitamento perfeito das pouquíssimas locações (o prédio onde moram os personagens e as ruas de Nova York), sem o chamado apelo de cartão - postal.Ou seja, como dar o máximo das cenas, o máximo de si mesmo em algo extremamente concentrado ao limite da exigüidade, como se vários corpos e objetos ocupassem o mesmíssimo espaço à maneira de certa pintura moderna, com uma tensão e convivência que possibilita os deslocamentos.
Sim, Edwards repetiria o estratagema também brilhantemente em o Convidado bem Trapalhão com sua ambiência entre o mais estritamente real, ao ponto da “caricatura” expressionista, e o deslize para o mais “fantástico”, em sua festa onírica de cores que brincam de ser, de existir. Assim, o cinema desse período ensinava como reconstruir uma narrativa fluídica, mas tonificada em um espaço de intensidade criadora, que por força de observar tão intensamente e clinicamente o real concentrado, retira-lhe novas camadas, transborda-o por completo, gerando uma atmosfera de magia e delírio em seus personagens, misce en scéne e andamento (mesmo que o tom cáustico, em suas constantes pinceladas, não abandone jamais a obra).
Há, portanto, a sobreposição de um novo mundo em que Blake Edwards, demolidor por excelência, se interessa em colocar o humano em xeque, em implodir esses mundos excessivamente adultos, seriamente corrompidos e mecânicos, recriando-os pela crença na construção (“neo-construção”) “pura" do olhar, na força de se ver as coisas como se fosse pela primeira vez e já criticamente ,como a criança petulante de Miro, nesse fluxo contínuo que vai das pré-formas às novas formas e dessas mesmas para as pré-formas, novamente.Mas tudo isso sem abandonar o “esquema narrativo primeiro”, aquele que possibilita que haja o “princípio, meio e fim” habituais.
Tal cinema acaba por gerar um rigoroso estudo crítico de padrões de comportamento ao mesmo tempo em que aposta no resgate de um estado virginal primeiro de tudo, algo desse estado pré-adâmico em que contam as brincadeiras algo marotas, um riso desabusado, as surpresas do acaso, as pilhérias de Freud e as “superfícies” de Lacan, em que a poesia mais pura, originária é responsável por um cinema livre, de raro frescor, com música e imagens entrelaçados por todos os poros para compor certo encanto primal, instalado como resistência à acidez de costumes, do que é fixo e estagnado.
Inesquecíveis lembranças que me fazem pensar em Bonequinha de Luxo como aquele filme que cria curvas, flexibilidades para injetar forças novas no que poderia ser “mais um filme romântico”. Numa obra que trabalha em cima de todas as potencialidades das arestas narrativas, partindo de uma herança de cinema que vem de Chaplin e vai desaguar num rio de Fellini,tendo passado pela delicadeza e ironia de Lubitsch e Cukor, já com a cara na renovação profunda do cinema do período, um cinema sem aprisionamentos narrativos, que seria esse dos anos 60(nouvelle vague, o mesmo Fellini), sem abdicar jamais de seu charme classicista.
A ver e rever sempre!
Alessandro Coimbra

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Crime Contemporâneo



Crime Verdadeiro foi uma obra pouco compreendido pelo público a seu tempo, um tanto por conta de sua roupagem policial. Portanto, o indivíduo vai esperando um filme e sai frustrado com o resultado.Isso ocorre porque Crime Verdadeiro não é exatamente um filme policial, mas um drama sobre justiça e ética. Mas, mais do que isso, sobre as relações existentes entre exclusão social e exclusão existencial.
Clint faz um jornalista teimoso que não se contenta com a aparência dos fatos.Como sua vida privada é um fiasco (seu relacionamento com a esposa e filha), ele tenta compensar, preocupando-se em demasia com as questões públicas.
Por ser muito julgado em vida, ele sabe quão delicados são os juízos que fazemos das coisas. Normalmente a chamada justiça e os cidadãos não conseguem ir além das aparências e um julgamento precipitado revela uma total ignorância.
Neste filme, um cidadão é condenado à pena de morte por suposto roubo e assassinato. Clint não crê no senso comum, tem horror às unanimidades e às opiniões em massa. Seu trajeto é o de ir na contra- corrente, negando a ditadura da imagem.
Em Crime Verdadeiro, estamos diante de uma narrativa precisa, que só põe em cena o que possa ser essencial e a sugestão do mesmo, não se preocupando com o espetaculoso. Trata-se de uma aula de limpidez de linguagem. Mas não se trata de um método frio. Cabe a ele fazer do cinema a arte da indagação. Afinal, o que é uma imagem, sua real legitimidade e qual o seu poder na sociedade de massas?
Há um trabalho interessante com o emprego da cor verde, que significa sonho na cabeça da criança, filha do pai que está sendo condenado. Ela pede um lápis de cor verde para desenhar, enquanto conversa com o pai na cela. O lápis de cor havia sumido. Então, há uma elipse e vemos o verde na moldura de um quadro burguês.Ou seja, a burguesia engessou o sonho,aprisionando-o em uma moldura. O sonho das minorias é tratado com total descaso pela justiça.
Novamente veremos o verde, desta feita como iluminação na última e marcante cena final, que ainda questiona: Os sonhos para as minorias são possíveis em uma cultura displicente, coisificante e de massas? Qual seria hoje o sentido de qualquer espírito natalino, se a exclusão indiscriminada do outro faz parte dessa mecânica de produção de falsas verdades, de simulacros, que querem compensar realidades por imagens, o concreto, o fundante pelo virtual?
O diretor é muito lúcido diante de tão difícil tema e trata as cenas sem nenhum apelo retórico.Notemos até mesmo que a cena da redenção, da inocentação do criminoso não é mostrada(ocorre fora de campo após um congelamento da imagem), ou seja, os verdadeiros empenhos de justiça e os eventuais milagres são coisa rara. Mas, mais do que isso, estão fora de ângulo, não cedem à sua fiel reprodução mimética,escapando a ela. Portanto, não pertençem nem ao cinema e nem ao mundo corrido e suas técnicas de reprodução.
Tal protagonista vivido por Clint deve, então, seguir seu trajeto sem olhar pra trás, pois até mesmo para ele esses fatos podem não dizer respeito, estabelecendo uma real conexão. Assim,ele carrega consigo o peso de suas próprias contradições.
Em Crime Verdadeiro, Clint-personagem pode enxergar com clareza as contradições da justiça e até parcialmente resolvê-las, pois não pode resolver as suas próprias.Por outra,aquele que sabe bem o que o crime é, o que a injustiça, de fato, significa, está definitivamente excluído das coisas. Como na última tomada, em que vai para o “limbo”, para o extra-campo(à direita da tela),em sentido inverso ao movimento daquelas pessoas(à esquerda da tela),enquanto ao som do mais belo jazz cortante, triste e crepuscular, permanece solitária uma árvore de Natal, estática,anônima, no entre-lugar. Indagativa?
Alessandro Coimbra

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

As incertezas do amanhã



Perguntado pela atriz Ellen Burstyn, numa reunião que antecedeu as filmagens de “Alice não mora mais aqui” (“Alice doesn’t live here anymore”, 1973), sobre o que ele, Martin Scorsese, conhecia sobre as mulheres – pois Ellen achava seus filmes anteriores muito masculinizados – o diretor retrucou espirituosamente: “Nada. Mas quero muito aprender”. E assim foi.
Talvez por ter sido convidado a dirigir um filme que já tinha uma atriz principal, um roteiro definido e que, na verdade, deveria ter sido dirigido por Francis Ford Coppola, conforme era o desejo inicial dos estúdios, “Alice não mora mais aqui” ocupe uma posição singular na filmografia de Scorsese. Primeiramente, temos uma mulher como personagem principal, característica destoante da grande maioria de seus filmes. Mas, sobretudo, o longa é um “road-movie”, não possuindo em sua construção, como em outros filmes do diretor – só para citar alguns: “New York, New York” (1977), “Taxi Driver” (1976), “Cassino” (1995) – uma cidade que se dimensione como figura dramática, interagindo como realidade pulsante no encontro com as demais personagens, ainda que tenhamos, como uma espécie de leitmotive, a determinação da personagem principal em chegar a Monterey. Porém, Monterey em nenhum momento adquire uma tangibilidade transformadora para Alice, nem se interpõe como um espaço urbano relacional, é tão somente uma palavra-chave que remete a um passado envolto numa névoa de inocência e felicidade.
“Alice não mora mais aqui” é um filme de busca, renascimento, é um filme de entre-lugar. Alice se confronta com várias possibilidades de reconstrução de uma identidade obstruída por anos de um casamento de conflitos e de distanciamento mútuo. E ao se lançar impetuosamente na reconquista desse passado, Alice se depara, paradoxalmente, com a abertura de um futuro a espera de ser desbravado, como as desérticas paisagens rodoviárias do meio-oeste americano. Alice é a feminização do pioneiro. É o velho homem americano na imensidão solitária da conquista de um espaço indômito, e que somente neste périplo se desvenda. Dentro de uma perspectiva de afirmação feminista dentro do cinema, Alice desenvolve a grandiosidade libertária desencadeada pela Jill de Claudia Cardinale em “Era uma vez no oeste” (“Once upon a time in the west” – 1968) de Sergio Leone.
Numa tentativa de burlar a imposição do estúdio para que o filme tivesse um “happy end”, Scorsese não encerra o filme na apoteótica reconciliação de Alice e David (Kris Kristofferson) na lanchonete, mas num “plano-síntese” no qual Alice caminha ao entardecer com seu filho (importante observar que David não caminha ao lado deles) em direção ao seu sonho, simbolizado na cena pela placa com a inscrição “Monterey”. Assim, com o movimento de Alice se afastando da câmera em direção à placa, Monterey deixa de atuar como a força atrativa de um passado que não mais existe, se transfigurando, então, na energia motriz compelindo-a para um futuro a ser continuamente conquistado.

Fábio Dalpra

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O inferno, segundo Haynes, está no “normal”



A perfeição da sociedade americana é questionada em Longe do Paraíso não com o intuito de almejar a autocongratulação (como, por exemplo, Beleza Americana), mas como forma de pôr em xeque certos ideais. Não se trata de rir do imperfeito, do que não corresponde a nossos ideais de propaganda, mas de mostrar que na propalada perfeição residem mais inverdades do que suspeitamos.Mas aqui se tratam de mentiras, superfícies que refletem valores.Quais valores?
Família vista como exemplar apresenta certos desgastes.O marido não é exatamente heterossexual e sua esposa tem forte amizade com um negro jardineiro.Tudo isso dentro de um ambiente de amenidades.Assim, como quem não quer nada, como quem recria o ambiente dos anos 50 e do mestre do melodrama Douglas Sirk, Todd Haynes vai cutucando as feridas por intermédio de uma leitura do mal estar presente na Sociedade da Beleza, construída pelo próprio cinema.
Haynes, ao emular Sirk, não pretende somente fazer uma citação de cinéfilo, mas construir uma ficção que se apodera dos ideais americanos vigentes nos os anos 50(mas não só).Contudo, essa América almejada pelo filme é de hoje e de sempre. Nada mudou e a localização no tempo existe pra comprovar como certos padrões nos são ancestrais.
Nesse ponto, o filme nos oferece um jogo de proximidades e distanciamento. Não quer nos chocar.Prefere sutilmente nos abrir ferida por ferida, sem que percebamos que a loucura toda está mesma nesses ideais que compartilhamos.Utiliza-se, portanto da alusão, do tipo: É essa a sociedade que veneramos, então fiquemos com ela.Mas observemos como ela está fundada em bases de espectros, irreais.
O racismo não é visto de forma unilateral, ou seja, os negros em seus guetos também discriminam os brancos. Nós não temos em Haynes o alarde de Spike Lee, ou Beleza Americana.Com delicadeza lapidar, como se fosse um mero filme nostálgico, Longe do Paraíso, com respeito por seus protagonistas, nos torna, por fim, como participantes de um discreto, mas imenso abismo e, ao final, reencontramos nossa época(hoje), nossos condicionamentos, que deixam de nos ser exteriores.Afinal, somos nós essa imagem que atravessa décadas.
Ao recriar os filmes de Sirk (como forma de dialogar com a política das imagens), esse filme nos propõe que a Beleza padrão ao nortear nossos valores, nos joga também em uma casa de bonecas coberta de limitações, onde uma fofoca corresponde, pela força e naturalidade, a um apedrejamento e onde o casual, o mais comum é o lugar por excelência, do mais absurdo.
Belíssimo filme que confirma Haynes como um grande militante do cinema contemporâneo, muito embora não é pelo panfleto, nem pelo escândalo, que chegamos a essa “política cinematográfica”.Mas pelo que temos de mais comum e “normal”.

Alessandro Coimbra

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

A Dália Negra


A Dália Negra (revisão) é mesmo um dos maiores De Palma, por mais que se fale em "assimetrias" a respeito dele. Durante o filme todo perguntamos o que é realidade e o que não é, enquanto o protagonista passa a ter consciência de que se move em um mundo de aparências. Então, onde está a verdade (não à toa, muitos movimentos de câmera são puro Orson Welles)?
A personagem de Scarlett Johanson é um simulacro, uma figura, um traço apenas, que está ali para nos remeter a uma figura feminina de um noir que não existe mais. E De Palma nos leva a perguntar se ela é mesmo real, se é legítima, pois ao final, depois de passar por tantos labirintos de aparências, o herói só terá a ela.
Bem, por outro lado, ela é Hollywood (se remete ao noir) e o filme se desenvolve no sentido de nos mostrar o outro lado da indústria, de Hollywood, terra das negociatas e das perversões.
Há muito sarcasmo crítico nesse filme que relaciona esse "mundo de irrealidades" a um palhaço deformado, que é o quadro que aparece várias vezes na casa dos milionários e no local do assassinato. Inclusive, nesse local o palhaço aparece meio desmanchado, as tintas de sua figura se confundindo com o sangue do assassinato, marcando o humor negro de De Palma (o sarcasmo mais a melancolia do palhaço). E ele nos fita como ocorre na obra de arte moderna, é ele que nos vê, que vê esse grupo social, essa indústria.
Mas e o espectador, onde fica? Ele está ao lado do protagonista que começa pueril e termina o filme sem saber o que pode haver de real, de verdeiro nesse mundo. Scarlett Johanson é o que lhe resta, mas será Scarlett apenas mais um filme (até porque o que ele descobre sobre ela e seu amigo é que eles eram cúmplices em um crime) um mero simulacro que emula o noir? Uma amante ou uma amiga? Uma mulher? Será que ainda é possível descobrir algum sentido, alguma verdade em Los Angeles, em Hollywood?
Ou bem De Palma é o próprio palhaço melancólico, que sabe que somente travestido de palhaço pode fitar aquilo tudo. É necessário se passar por palhaço, se instalar como obra moderna nos bastidores da indústria, fitando com expressionismo o filme, nossas consciências pueris, mornas, para só então nos devolver para a heroína.
Portanto, é aqui que fica o espectador. Como o protagonista, ele é aquele que terá agora e urgentemente de dialogar com o simulacro de heroína (o final do filme), ou seja, com a obra de arte,com a indústria e Hollywood, assim como o diretor em suas barroquices.

Alessandro Coimbra

domingo, 9 de setembro de 2007

Encontros e Desencontros



Um belíssimo filme pode ser feito de mutismos, gestual de humor, e neste caso, à maneira de Tati, de trocas furtivas de olhares, de respingos de conversas, de passos furtivos, enfim de imagens impregnadas de verdades. Encontros e Desencontros, segundo filme de Sofia Coppola, passa por aí, ao buscar um encanto que possa ser encontrado na imperfeição do tempo cotidiano.
Bill e Scarlett se encontram perdidos em Tóquio. Cada qual para lá foi por motivo diferente. O primeiro para fazer um comercial (embora de fato preferisse estar fazendo um filme decente), a segunda, recém formada em filosofia e naturalmente (?) desempregada, para acompanhar o marido que só pensa em trabalho (ou seja, um workaholic). Ambos deslocados no espaço e no tempo, por circunstâncias se encontram e tentam transcender as angústias de uma vida, a tristeza de um tempo e espaço indiferentes.
Sofia Coppola acompanha as andanças de seus personagens, seus silêncios e pausas, enfim, sua gravidade, mas também sua musicalidade contrastante. Há tempos o cinema não lembrava como filmar o nascimento de um sentimento entre as coisas, os objetos, o mundo, de um processo que vai de um gestual de inadaptação a um de extra-adaptação, metaforizada e reinterpretada em cima de um fugidio, daquilo que sempre se desprende, seja para o chão, seja para o ar (um filósofo mesmo fala sobre a palavra que se perde logo que dita, um poeta sobre o tempo que escoa...). Mas não se trata de um filme feito sob o estado da mera desolação, ainda que esta esteja presente, mas sim sob o renascimento que possa haver logo nos interstícios.

Pois os personagens se acham a si próprios somente nestes intervalos, deslocados que normalmente são. Seu sentimento de exílio encontra-se muito além do fato de estarem em solo estranho e a estadia no Japão somente reforça esse estado de coisas, essa impossibilidade de se sentirem sempre "em casa".
Contudo, o sentido passa a ser consumado a duras penas dos entre-lugares para os lugares e dos mesmos lugares para os entre-lugares, em misterioso contato, reconfigurado agora por uma fenomenologia de abertura tanto para a cidade (Tóquio), reabsorvida poeticamente, quanto para uma afetividade cúmplice, plena e singular. A relação se sustenta nessa efêmera vivência(nessa captação da poesia que escoa) em andanças, música e silêncios, embora torne possível uma proto-fábula, responsável mesmo por uma diferenciada dimensão de experiência e de sentimentos, em que os seres mal conseguem entender o que se passa como forma de se reter o fluxo.
Sofia entrega-se de corpo e alma à direção dessa grande obra contemporânea, marcando o espírito dos protagonistas, de Tóquio e do cinema. E ainda finge, por modéstia, que não tem nada a ver com tudo isso. Encontros e Desencontros é a necessidade de viver, achar e se achar, ainda que por segundos, nesse contínuo espaço tênue “em branco” que reside entre os seres e os objetos, tal como quando a protagonista, em sua experiência de iniciação, põe delicadamente uma flor no vaso entre vasos por sugestão de uma japonesa senhora.
Por fim, terminamos por notar a diferença do enfoque da cidade no início da obra (aridez em universo mobilizado e mutista) em relação ao final, em que é tornada cidade-magia discretamente com música e fluxos “em fuga”. Do mais efêmero ao mais eterno, Sofia Coppola, do limbo de Hollywood, devolve alma e coração inteiros ao cinema americano.
Alessandro Coimbra

domingo, 2 de setembro de 2007

Clint e a América da resistência



Clint Eastwood decide mergulhar na poesia uma vez mais, uns bons anos após as “Pontes de Madison”, que era, até então, seu filme mais poético.”Menina de Ouro” é, na verdade, um filme-armadilha. Primeiramente, porque ele nos aparece como um “boxer” filme. Depois temos a presença de um drama ou até mesmo de um melodrama.Mas vê-lo por essas vias é não observar as entrelinhas, o subtexto sempre sutil. Clint brinca com os gêneros para explorar, de fato, o que escapa a eles, qual seja, a poesia das relações.
Na primeira hora de filme, o que temos é uma descrição um tanto “aventuresca” dos tipos sociais que mais lhe interessam, ou seja, aqueles que invalidam o chamado “sonho americano”, os chamados deserdados da América. É pra eles que Clint assesta suas lentes: a menina que guarda restos de comida do restaurante onde trabalha para depois matar sua fome, o ex-lutador que está sempre com as meias furadas, a mesma menina, que guarda moedas para realizar um sonho,... Essa América que aparece é da orfandade e também, talvez por isso mesmo, a que mais luta para preservar sua dignidade.
Depois da primeira hora, Clint-diretor começa a deixar bem claro seu sentimento quase “paternal” por seus personagens, a exalar extrema compaixão de suas lentes, pelo cuidado com a escolha dos ângulos, pela necessidade de transpor para seus personagens o ato de protegê-los de certa “violência do mundo” e de “alimentar” quem não tem sonhos, ou bem, perspectivas.Morgan Freeman, nesse sentido, incentiva o jovem rapaz lutador a crer, independente do aval de suas próprias forças, preservando assim sua decência ao invalidar a “nova ordem mundial”.E é o mesmo Freeman quem dá a ponta pé inicial para o treinamento da menina vivida por Swank (magistralmente).E, aliás, que atriz, que atores!
A principal violência, no entanto, não é a física, mas a “moral”, a que incide sobre o campo das relações.Clint-personagem precisa transcender seus limites como pai e ele tenta reaver seu relacionamento com a filha através das cartas que sempre voltam.A família de Swank, por sua vez, é o retrato de certa América reacionária, de alma provinciana e incapaz de ir além da indiferença.
Mas seria Menina de Ouro um filme moralista?À sua maneira, mais do que isso é um filme de resistência do humanismo.Clint relaciona-se mais e mais com Swank como resistência à mediocridade do mundo em que ela se encontra, para ir além de um vínculo sanguíneo de fracasso.E não é a família o micro-cosmo dessa sociedade doente?Ou seja, o que existe no filme é a necessidade de estabelecer novos gerenciamentos de contato, novas relações extremas que compensem a falha da sanguínea e, principalmente, da sociocultural (afinal, Clint-diretor trata da América dos deserdados).
É nessa esfera, então, que morará a poética, nesse lugar onde ultrapassamos o dogma religioso (a lembrar as conversas entre o protagonista e um padre) e o dogma cultural (amar quem não pertence à sua esfera privada).Para o personagem de Clint, abrir mão de Swank não é apenas dispensar um dogma, mas na verdade, significa abrir mão de parte considerável de sua felicidade pessoal, pois para ele, permancer com ela seria um grande lucro.Mas Swank prefere agora deixar esse mundo, tendo já cumprido o que lhe coubera.
Esse ponto merece especial atenção no filme: Swank não nos aparece, em momento algum, como uma sofredora mor. Pelo contrário, ela havia conquistado muito do que queria e, tendo já cumprido esse “objetivo”, ou seja, ir até o fim dela mesma, já poderia partir. A decisão de Clint deve passar por esse tipo de entendimento (a última conversa de Freeman com ele elucida esse ponto) e, nesse sentido, os últimos olhares que ele e Swank trocam ultrapassam a compaixão e os olhos dela brilham ao saber que ele realizaria o que ela tanto desejava.
Em “Menina de Ouro”, faz-se necessário reparar o péssimo gerenciamento do mundo social e das relações através de uma certa renúncia. É preciso ser resistente à derrocada de qualquer humanismo no mundo. É preciso ir além da religião, dos laços de sangue, ser poeta na alma (não à toa, o protagonista tem sempre à mão um livro do poeta Yeats), crer em esferas de relações que ultrapassem a esfera mais privada e previsível. Enfim, crer num “algo mais”, que contradiga essa América da “nova ordem mundial”, engessadora de perspectivas fundantes (e fundamentais) parece ser a aposta central de Menina de Ouro, personagem e filme.
Nessa profundidade do olhar e nas relações que passam pelo inexplicável mora a grandeza da obra. E como ser tudo isso com tamanha exatidão? A resposta encontra-se nas imagens de “Menina de Ouro”, um filme que cresce a cada revisão como talvez o maior de seu diretor. Se não, com certeza, o mais sóbrio (junto a Sobre Meninos e lobos).
Alessandro Coimbra

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

A experiência espiritual no cinema (os 5 mais)

Europa 51, de Roberto Rossellini. Além de ser o maior cineasta italiano, o que não é pouco, é o divisor de águas do cinema. Aqui ele realiza sua obra-prima, algo intraduzível em palavras. A personagem passa da burguesia, como busca, ao socialismo e como esse é insuficiente, ela passa à conversão espiritual. Sai do castelo e vai para as casas parcas e quanto mais se enraiza, mais se desvanece, nós a perdemos. O essencial do essencial não se retém no olhar, mas é, ainda sim, experiência, e a maior.

Ordet, de Carl Dreyer. Conhheço pouca coisa de Dreyer, mesmo ele sendo tão admirado e respeitado. Esse filme de imensa experiência espiritual é considerado normalmente seu melhor. Ordet, além do mais, filma um milagre (como ninguém conseguiu fazer). Como traduzir um milagre em palavras? Deixemos de lado os racionalismos, os pragmatismos, etc,...O que é, é! A evidência absoluta do absoluto.

Paraiso Infernal [1939]O Paraíso Infernal, de Howard Hawks. A obra-prima desse cineasta do ocidente e do oriente, também da mocidade, da vida adulta e da velhice, a um só tempo. Do classicismo e da modernidade, o mestre do requinte e da fineza absolutas, Howard Hawks.

Um Corpo que cai, de Alfred Hitchcock. A obra-prima do mestre absoluto Alfred Hitchcock, o gênio da encenação da metafísica cristã.

O Homem que matou o facínora. John Ford, o homem da poesia da simplicidade, dos homens comuns, da instauração do mito fundador de uma nação e também seu relativizador, o pai do cinema americano. Enquanto Hawks é o homem do refinamento absoluto, Ford é o ás da singeleza no cinema.Aqui, ele realiza sua obra-prima absoluta da maturidade. Esse filme questiona a concepção do mito do heroísmo na civilização.

O essencial, essencialíssmo dessa arte, encontra-se aqui!

Alessandro Coimbra

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

A narrativa do acolhimento


A história da menina raptada por índios e a busca dos personagens para reavê-la oculta uma questão formal mais importante, uma complexidade que não está na história, mas encontra-se na maneira de filmar.
O começo mesmo do filme é de uma delicadeza explícita. O reencontro do "herói" com seu antigo amor, dessa feita casada com seu irmão. A tragédia iminente em que a família é destruída menos por culpa dos índios e mais pela ignorância do herói que, obcecado por seus ideais doentios, não consegue olhar pelos que lhe estão próximos.
Assim como ele perde sua mulher para o irmão, dessa vez ele irá perder todo seu vínculo de sangue, afinal, todo o grupo é dizimado, com exceção de Debbi(mais à frente Nathalie Wood, em pequena presença epifânica). E agora é o sangue que leva os próximos.
Assim John Ford inicia o filme com contornos de tragédia, de perda para sempre do herói que carrega consigo as contradições dessa civilização que, como pioneira tem seu projeto, mas que se torna cega e capenga por transformar sonho em pesadelo, ideal em desejo de exclusão, em racismo cego.

Porque, para Ford, quem conta são os simples do dia-a-dia. Ele já havia mencionado isso com tons de ironia em Fort Apache.

O tempero trágico de Rastros de Ódio, a exploração formidável dos espaços do Monument Valley, exprimem toda a densidade das situações, dos equívocos da civilização. Contudo, depois o filme importa menos isso que como filmar os personagens, os espaços, os objetos... E de certa forma, a tragédia não se esvai, mas o central acaba sendo uma narrativa clássicista das melhores e em termos de emoção, a melhor.
Ford não só acredita no que conta, mas tem imensa paixão por estar contando. Isso gera um amor de direção, uma encenação apaixonada, sempre. Então, ele não é um formalista idiota que se auto-masturba no que filma. A rigor, ele ama profundamente tudo o que está em cena, sobretudo os personagens. E é esse amor que faz mover a narrativa e não o virtuosismo ou a intriga (qual delas?). No documentário que antecede o filme Elogio ao Amor, Godard comenta, com suas palavras, que a câmera deve saber como receber o objeto.
100 anos antes, John Ford já sabia disso. Basta assistir Rastros de Ódio. Cada plano é uma meditação, não tanto sobre o "herói" amargo(como é sempre dito), mas principalmente sobre a conduta de saber acolher as coisas. Sempre do Monument Valley para a câmera, do contra-campo para o campo, do exterior para o interior,do fora para o dentro.
Não à toa o último plano do filme coloca John Wayne para fora desse espaço de aproximações (Walt Whitman no cinema), contrariando de maneira irônica toda forma de encenação do filme. O falso herói(anti-herói?) que não sabe muito bem como acolher o outro é expulso do quadro. E aceitar Debbie não o redime. Mas essa brilhante cena final torna-se emblemática de toda a obra (o acolhimento da moça que, índia ou não, só faz sentido por estar "dentro" do filme, da alma do "contador de histórias”, lembrando o Peixe\n Grande, de Tim Burton).
Esse recurso do “ponto de fuga pra dentro" faz todo o encanto da obra e torna até mesmo crítico o desfecho para o personagem de Wayne.
Rastros de Ódio é clássico, desde sempre!
Alessandro Coimbra

Sexualidade Americana


Veludo Azul é um filme a se considerar bem. Desconfio que Lynch tenha mesmo melhorado com o tempo, mas o filme apresenta momentos inequivocadamente fortes. Filme sobre as entranhas da América? Sobre o Mal que reside dentro dela? Antes de tudo, um filme sobre a sexualidade humana e sua complexidade (certas perversões que aparecem no filme são até "normais", há a curiosidade sobre o mistério, enfim, o enigma dos desejos, das paixões). O protagonista, que começa curioso e observador (indo "de fora", da natureza, para "dentro", para o interior do universo norte- americano) não chega a passar para o "outro lado", da perversão do Mal, mas chega a vivenciar os limites das paixões, da sexualidade. Já o Mal existe mesmo e penetra nas camadas dessa sociedade.
Mas, como em Murnau, Lynch complementa tudo com o "belo", a paz, o amor (amor mesmo, bem dito e não as paixões, ou seja, Laura Dern ao invés de Isabela Rossellini). Interessante que mesmo quando Lynch filma esse estado de paz, de beleza, de Bem, não deixa de haver o elemento de estranhamento, da alteridade que caminha pelo interior das coisas (não só da sexualidade). A velhina, em meio ao cenário paradisíaco desse final, observa o pássaro comer um inseto e fica um tanto perplexa vendo isso ("eu não faria isso"), ao que Laura Dern exclama," é um mundo muito estranho". Ou seja, a alteridade, às vezes interior (como no caso das paixões, da sexualidade) está sempre presente em tudo.
Nessse filme e em outros (como Twin picks), seria David Lynch também nosso Nelson Rodrigues?
Enfim, Veludo Azul, além de ser um tratado (um tanto imperfeito às vezes em sua forma de expressão um tanto óbvia, até caricata, a ver o clímax de suspense) sobre o Mal, é o mistério do mundo (a natureza, ora corrói uma orelha, se deglute, ora aparece como deslumbre do Bem), mas, principalmente,puro sexo, profundo.
Alessandro Coimbra

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Sessão Cancelada

Em virtude de uma palestra realizada no mesmo espaço e no mesmo horário, não houve sessão nesta quinta, dia 16/08.

Voltamos no dia 30/08, com o filme "Bandido da Luz Vermelha".

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

“Núcleo de Cinema Juiz de Fora Cidade Aberta”


Há quatro anos e meio funciona em Juiz de Fora, na Sala João Carriço, da FUNALFA, no Parque Halfeld, o “NÚCLEO DE CINEMA JUIZ DE FORA CIDADE ABERTA”, iniciativa do nosso associado WILLlAM SALGADO, crítico de cinema e profundo estudioso desta que é considerada a mais completa das Artes.

O “NÚCLEO” foi formado em 2002, contando, entre seus freqüentadores, com estudantes universitários, artistas, realizadores de curta-metragens, poetas, professores, profissionais liberais e aposentados, e suas sessões são abertas ao público em geral. Após a projeção dos filmes, sempre às quintas-feiras, a partir das 20 horas, são feitos debates enriquecedores abordando as obras ali apresentadas, sob a coordenação do William, privilegiando todos os aspectos que cercam o fenômeno cinematográfico.

Para realçar a importância de que se reveste o “NÚCLEO” para uma cidade carente de uma boa programação artística como Juiz de Fora, basta lembrar que ali foram apresentados, neste período de existência do grupo, cerca de 100 filmes essenciais da cinematografia mundial, dirigidos por mestres como D.W. Griffith, Buster Keaton, Charles Chaplin, Roberto Rosselini, Jean Renoir, Luchino Visconti, Fritz Lang, Jean Vigo, Robert Bresson, Jean-Luc Godard, John Cassavets, Orson Welles, Glauber Rocha, Luiz Buñuel, Dziga Vertov, Alfred Hitchcock, Françoise Truffaut, Abbas Kiarostami, F. W. Murnau, Akira Kurosawa, Douglas Sirk, Píer Paolo Pasolini, Jacques Tati, Kenji Mizoguchi, Max Ophuls, Ernst Lubitsch, Takeshi Kitano, Eic Rohmer, Roman Polanski, René Clair, Federico Fellini, Martin Scorcese, Carl T. Dryer, Howard Hawks, Billy Wilder, Woody Allen e Clint Eastwood, dentre outras dezenas de importantes realizadores. Programação semelhante, só em Cinematecas e cinemas de arte de metrópoles como Paris, Londres ou New York, o que confirma o privilégio de se contar com a atuação desse importante “NÚCLEO” em Juiz de Fora.

Nestes tempos obscuros, em que a sensibilidade e espírito crítico das pessoas vêm sendo lobotomizados pela frivolidade das mídias, sobretudo na Televisão, na Internet e no Cinema, e quando filmes descartáveis inquestionáveis como os “Homem-Aranha” da vida tomam de assalto todas as salas de cinema do mundo ocidental, iniciativas como as do “NÚCLEO DE CINEMA JUIZ DE FORA CIDADE ABERTA” só podem ser dignas de aplauso, ao caminhar altivamente na contramão dessa enxurrada de mediocridade, e servindo como instrumento de resistência cultural e repúdio ao lixo que nos é impingido pelos cartéis cinematográficos norte-americanos.

A propósito, evidenciamos que a chamada modernidade, ao tempo em que nos acena com sedutores artifícios tecnológicos, também vem impedindo o acesso às novas gerações a obras de arte esteticamente válidas, capazes de resgatar sua dignidade e valores soterrados pelo liberalismo privilegiar, também no campo do Cinema, o individualismo, a violência e a falta de ética. Assim, ao incentivar o consumismo de obras vazias, amplia-se a vertente para construção de uma sociedade ignorante e infantilizada, deixando à margem também levas de potenciais novos amantes do cinema, já que desprovidas de instrumental crítico que ampliasse sua exigência de obras que pudessem enriquecer sua visão da Arte, do mundo e do próprio homem.

Sem falar que a indústria do cinema norte-americano atual, com raras exceções, é inteiramente voltada para o “merchandising” e o lucro fácil, e vem aniquilando, nas últimas décadas, com seu poderio econômico avassalador, cinematografias internacionais de indiscutível prestígio e qualidade, como as da França, Itália, Inglaterra, Alemanha, Suécia e Japão, hoje praticamente agonizantes.

Cumpre lembrar que a denominação “NÚCLEO DE CINEMAJUIZ DE FORA CIDADE ABERTA”, é uma homenagem explícita ao cineasta Roberto Rosselini (1906-1977), figura basilar e pioneira do Neo-Realismo italiano, cujo filme “ROMA, CIDADE ABERTA”, de 1945, foi um divisar de águas para o moderno cinema mundial, embora feito com recursos financeiros limitados e contando com cenários naturais e atores não-profissionais, mas que acabaria inspirando movimentos fundamentais do cinema contemporâneo como a Nouvelle-Vague francesa e o Cinema Novo brasileiro.

Vale também destacar que hoje, países de economia periférica como o Irã, vêm demonstrando, através de obras de diretores como Abbas Kiarostami e Majid Majidi, surpreendente capacidade de criação artística, com filmes premiadíssimos nos mais importantes Festivais de Cinema do mundo, justamente por blindar o poderio do cartel hollywoodiano, interditado em seu território por razões ideológicas explícitas.

Se você ainda resiste aos chamados filmes “blockbuster” e prefere homenagear sua inteligência com obras de alto nível artístico, reiteramos o convite para freqüentar as sessões do “NÚCLEO DE CINEMA JUIZ DE FORA CIDADE ABERTA”, na Sala João Carriço, da FUNALFA.

Finalmente, ainda em defesa do cinema de alta qualidade, não custa lembrar que a Arte é a descoberta do necessário, como já afirmou o genial diretor francês Robert Bresson (1907-1999).


Nelson Bravo

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Na mídia

O portal Acessa.com fez uma matéria conosco.

Para ver, clique AQUI


sexta-feira, 27 de julho de 2007

NÚCLEO DE CINEMA
JUIZ DE FORA CIDADE ABERTA

Sessões na Sala João Carriço,
às quintas-feiras, sempre às 20h
no prédio da FUNALFA
Avenida Rio Branco, 2234 - Centro
Juiz de Fora - MG

Programação do mês de AGOSTO

Dia 02/08
Roma de Fellini
(Roma, Itália/ França, 1972 - 128 min.)

Gênero: Drama
Direção: Federico Fellini
Produção: Turi Vasile
Fotografia: Giuseppe Rotunno
Trilha Sonora: Nino Rota
Elenco: Peter Gonzales Falcon, Fiona Florence, Britta Barnes, Pia De Doses, Marne Maitland, Renato Giovannoli, Elisa Mainardi, Raout Paule, Galliano Sbarra, Paola Natale, Ginette Marcelle Bron, Mario Del Vago, Alfredo Adami, Stefano Mayore

Sinopse: Retrato impressionista da cidade italiana de Roma por meio dos olhos de um de seus mais famosos habitantes, o cineasta Federico Fellini, que mistura passagens autobiográficas com cenas da Roma de 1972 (ano do lançamento do filme). O diretor mostra uma cidade caótica, com palhaços, prostitutas e outras lembranças de sua infância.


Dia 16/08
O Bandido da Luz Vermelha
(Idem, Brasil, 1968 - 92 min.)

Gênero: Drama
Direção: Rogério Sganzerla
Elenco: Paulo Villaça, Helena Ignês, Luiz Linhares, Pagano Sobrinho, Roberto Luna, José Marinho, Ezequiel Neves, Sérgio Mamberti, Renato Consorte, Maria Carolina Whitaker, Paula Ramos, Sérgio Hingst, Lenoir Bittencourt, lolah Brah, Carlos Faraht, Luís Alberto, Antônio Lima, Miriam Mehler, Ozualdo Candeias, Júlio Calasso, Maurice Capovilla, Neville D'Almeida, Armando Barreto, Carlos Reichenbach, José Alberto Reis, Renata Souza Dantas, Ítala Nandi, Sônia Braga, Maurice Segall, Júlio Grimberg.

Sinopse: Misterioso assaltante de residências luxuosas em São Paulo, chamado pela imprensa de O Bandido da Luz Vermelha, traz sempre uma lanterna vermelha e conversa longamente com suas vítimas. Apesar dos esforços da polícia, o bandido continua a circular sem problemas. Quando ele chegava, os valentes iam dormir mais cedo e as mulheres mais tarde. Clássico do Cinema Marginal, esta obra pode ser considerada como ponto de transição entre a estética do Cinema Novo e a ruptura marginal. Realizado na Boca do Lixo, este filme ainda conserva traços da produção cinema-novista que gira em torno da representação alegórica do Brasil e de sua história. Porém, a forte presença do universo urbano, da sociedade de consumo e do lixo industrial gerado por essa sociedade, marca uma nítida diferença. O abandono da ética do Cinema Novo e o aproveitamento, a partir daí, do cafona, acentuando a degradação dos personagens, vão igualmente nesta direção. Na representação do Brasil, o universo do político é explorado para aumentar o grotesco distante de uma visão global do social. "O Bandido da Luz Vemelha" é inteiramente elaborado, inclusive em sua forma narrativa, a partir dos restos da produção industrial da cultura de massas. A ausência de formas narrativas populares, como motivo para a fragmentação da linguagem, permite a adequação da narrativa da obra ao universo do lixo urbano da sociedade de consumo. O Brasil que emerge dos fragmentos desse filme já é um país completamente distinto daquele que surge nas alegorias cinema-novistas.


Dia 30/08
Capote
(EUA, 2005 - 98 min.)

Gênero: Drama
Direção: Bennett Miller
Roteiro: Dan Futterman, baseado em livro de Gerald Clarke
Produção: Caroline Baron, Michael Ohoven e William Vince
Música: Mychael Danna
Fotografia: Adam Kimmel
Elenco: Philip Seymour Hoffman (Truman Capote), Catherine Keener (Harper Lee), Clifton Collins Jr. (Perry Smith), Chris Cooper (Alvin Dewey), Bruce Greenwood (Jack Dunphy), Bob Balaban (William Shawn), Amy Ryan (Marie Dewey), Mark Pellegrino (Richard Hickock), Allie Mickelson (Laura Kinney), Marshall Bell (Warden Marshall Krutch), Araby Lockhart (Dorothy Sanderson), R.D. Reid (Roy Church), Rob McLaughlin (Harold Nye), Harry Nelken (Xerife Walter Sanderson), Robert Huculak (Repórter)

Sinopse: Em novembro de 1959, Truman Capote (Philip Seymour Hoffman) lê um artigo no jornal New York Times sobre o assassinato de quatro integrantes de uma conhecida família de fazendeiros em Holcomb, no Kansas. O assunto chama a atenção de Capote, que estava em ascensão nos Estados Unidos. Capote acredita ser esta a oportunidade perfeita de provar sua teoria de que, nas mãos do escritor certo, histórias de não-ficção podem ser tão emocionantes quanto as de ficção. Usando como argumento o impacto que o assassinato teve na pequena cidade, Capote convence a revista The New Yorker a lhe dar uma matéria sobre o assunto e, com isso, parte para o Kansas. Acompanhado por Harper Lee (Catherine Keener), sua amiga de infância, Capote surpreende a sociedade local com sua voz infantil, seus maneirismos femininos e roupas não--convencionais. Logo ele ganha a confiança de Alvin Dewey (Chris Cooper), o agente que lidera a investigação pelo assassinato. Pouco depois os assassinos, Perry Smith (Clifton Collins Jr.) e Dick Hickock (Mark Pellegrino), são capturados em Las Vegas e devolvidos ao Kansas, onde são julgados e condenados à morte. Capote os visita na prisão e logo nota que o artigo de revista que havia imaginado rendia material suficiente para um livro, que poderia revolucionar a literatura moderna.

domingo, 22 de julho de 2007

Elefante

Gus Van Sant, Elephant, EUA, 2003


Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o título do filme. Uma inspiração crucial para Gus Van Sant foi o documentário homônimo feito por Alan Clarke em 1989, que se passa em período e local (Irlanda do Norte) diferentes, mas que também trata da violência entre os jovens através de uma narrativa picotada. Apesar de Clarke ter assim nomeado seu filme por julgar o problema abordado "tão facilmente ignorável quanto um elefante na sala de estar", Van Sant inicialmente achou que o título se referia a uma antiga parábola budista sobre um grupo de cegos examinando diferentes partes de um elefante. Nessa parábola, cada cego afirma convictamente que compreende a natureza do animal com base tão-somente na parte que lhe chega ao tato. Ninguém vê ou sente o objeto na sua totalidade, mas todos arriscam um palpite totalizante – e, naturalmente, equivocado. Mesmo após ter descoberto o verdadeiro motivo pelo qual o documentário de Alan Clarke se chama Elephant, Van Sant afirma que o seu filme, rodado numa high-school situada em Portland, tem mais a ver com a parábola dos cegos.

O que Van Sant construiu em Elefante foi uma visão fragmentária e não conclusiva sobre a altamente complexa questão trazida à tona pelo episódio sangrento de Columbine. Consagrado por saber filmar os jovens sem deturpar seu universo, o diretor adotou um posicionamento inequívoco, aquele de onde se vê tudo e nada ao mesmo tempo: o olho do furacão, o epicentro do evento trágico. O filme cresce centripetamente, dos jovens retratados em direção ao mundo – oposto exato de Tiros em Columbine, por exemplo. Os atores de Elefante são os próprios alunos do colégio em que se passa, selecionados após uma série de entrevistas realizadas pela equipe do filme. Eles são filmados em atitudes cotidianas, às vezes preservando diálogos e situações presenciadas por Van Sant enquanto os conhecia e travava os primeiros contatos. O trabalho do diretor se caracteriza em grande parte por esse misto de respeito e admiração pelo universo dos jovens: foi assim com River Phoenix em My Own Private Idaho, foi assim ao filmar o roteiro de Matt Damon e Ben Affleck em Gênio Indomável. O próprio Gerry, projeto experimental e exercício estético bastante ousado, onde já se nota extrema competência na confecção de atmosfera e no aproveitamento do potencial visual específico do ambiente, originou-se de conversas com os atores Casey Affleck e Matt Damon. Nasce sempre uma relação de proximidade desse encontro entre Van Sant e jovens atores/personagens.

Antes de pôr qualquer coisa no papel, Van Sant quis ouvir o que tinham a dizer os estudantes da high-school onde Elefante foi filmado. O roteiro final nasceu mais desse contato com o ambiente escolhido para abrigar o filme do que das idéias originais do projeto. A questão nem chega a ser de contaminação do meio-ambiente no momento da filmagem. A cuidadosa composição dos planos sugere todo um preparo, todo um decoro, todo um posicionamento de atores e câmera previamente estabelecido, mas a contaminação se deu antes, no processo de escrita, e o mais peculiar de Elefante talvez resida aí, num misto entre técnica de reportagem tributária tanto do neo-realismo (utilização de atores não-profissionais fazendo o que fazem na vida "real") quanto dos documentários "não-intervencionistas" e um trabalho de construção de atmosfera em nada gratuito ou feito à espontaneidade de um registro documental. A câmera não simplesmente escolhe um ângulo de onde a ação se torne visível e assume uma postura passiva: muito pelo contrário, a câmera interage com os personagens, acompanha-os de muito perto, explora os interiores da escola a ponto de mesclar-se a esse ambiente, fazer parte dele como nunca nenhum outro filme fez. Lá onde todos chegam repletos de teses pré-formuladas e realizam enquetes somente para ajustar os depoimentos às suas premissas, Van Sant encontrou vidas diferenciadas e as deixou acontecer, para depois emprestar-lhes sua visão de cineasta – e aí sim o filme emerge como uma construção inteiramente nova, que insere elementos visuais e sonoros que estariam ausentes no simples registro "direto". Não se trata de reproduzir o incidente em Columbine, não se trata de cobrir jornalisticamente o massacre. Trata-se de penetrar num determinado universo estando munido menos de intelectualidade do que de sentidos aguçados – e nele transitar menos com idéias formuladas do que com puras impressões.

Os personagens de Elefante não estão perspectivados por um motivo muito simples: não há possibilidade de estabelecer uma distância, a partir de um ponto fixo, entre observador e objeto. Tanto o ponto de vista varia ao longo do filme, jamais se fixa num mesmo personagem ou num mesmo local, como a distância entre quem vê e quem é visto tende a se anular. Em Elefante a estrutura narrativa fragmentada não aparece a serviço de um corte holográfico, que preserve sempre o contorno do todo, ou para simplesmente incrementar o filme. É justamente o contrário, é a impossibilidade de uma visão global (além da fratura do tempo ali implicada). Gus Van Sant rechaça a psico-sociologização, rechaça a perspectiva, rechaça a crítica, pois reconhece que a questão extrapola tudo isso. Chega a ser assustador quando vem a cena do massacre e a acompanhamos com a mesma proximidade e imersão que acompanhávamos o resto do filme.

Elefante se passa numa high-school como outra qualquer. Não é Columbine, mas também não é nenhuma outra em particular. Ao não citar local nem data, Elefante adquire uma dimensão importantíssima, que não reduz o problema a nenhuma ordem social específica, a nenhum contexto específico. Na cena no quarto de Alex, um dos dois garotos responsáveis pelos tiros, esclarece-se a postura essencial de Gus Van Sant perante o tema: enquanto Alex toca Beethoven no piano, a câmera gira 360º mostrando tudo que está à volta dele, todo o universo multicultural e multicolorido que o circunda: videogames, quadros e desenhos na parede (um deles, um elefante), roupas espalhadas, televisão. Quem o levou a arquitetar o massacre? Beethoven? O videogame que ele e o amigo/cúmplice jogam, daqueles em que o jogador assume o ponto de vista de alguém que atira em pessoas que atravessam na sua frente (momento de auto-blague de Van Sant, pois o jogo consiste nos personagens de Gerry sendo abatidos no deserto)? O documentário sobre o nazismo a que eles assistem na televisão? O acesso fácil às armas de fogo, bastando clicar num site da internet e recebê-las em casa, via sedex? Tal resposta nunca emerge das imagens de Elefante. Van Sant pensa que no cinema, assim como nos jogos políticos e econômicos, o desejo de compreender é imenso. Mas ele prefere ir contra esse desejo e colocar-se ao lado da questão, ou ainda, submerso na mesma (ver entrevista em Cahiers du Cinéma nº 579). Num episódio em que já imperava a lógica do absurdo e da aleatoriedade, o unidunitê final vem como o encerramento a um só tempo seco e aterrador. Do neo-slasher aos documentários à la GNT , nenhum trabalho atinge o que Elefante conseguiu atingir nesse universo estudantil norte-americano, seja em matéria de suspense, seja em matéria de captação imediata de um acontecimento.

O filme possui imagens estranhamente belas. A fotografia de Harris Savides é não menos que sensacional (pena que as salas daqui não estejam respeitando o formato 1:33 em que o filme foi rodado). Um filme voluptuoso – pelo apelo visual de seus personagens, pela movimentação de câmera, por seus poucos porém precisos slow-motions. Existe um clima de tensão e estranhamento tão bem fomentado – no que o som se torna crucial – que assistir a Elefante acaba sendo uma atividade dispendiosa. O tempo parece dilatado, o filme parece durar mais do que seus 80 minutos. Isso ocorre não porque Van Sant experimentou com a duração da imagem, como havia feito em Gerry, mas simplesmente porque a imersão do espectador é tão grande que ele ao final da projeção se sente exaurido, daí a sensação de tempo estendido.

Elefante é uma obra-prima fundamental para o cinema de hoje, que não fará tanto estardalhaço quanto os jogos manipulatórios grosseiros, o anti-americanismo pueril e o barbarismo cínico de Dogville, nem terá sua força política reconhecida por aqueles que preferem as oposições primárias (maniqueístas mesmo) e o conteúdo sentimentalista (ou seja, não político) da ficção de esquerda de Ken Loach, Costa-Gavras e cia. Enquanto Lars von Trier quis "escrever" (a essência de Dogville é profundamente literal e literária) uma espécie de livro iniciático para um cristianismo (talvez já em funcionamento no mundo, tendo como ponta de lança os EUA) sem compaixão e bélico, Gus Van Sant optou por perscrutar uma realidade que ele reconhece entender somente em parte, fazendo um filme que substitui qualquer conceito a priori por uma mente totalmente aberta aos sons, às imagens, às frases, aos gestos, aos lazeres, às fraquezas e virtudes, em suma, aos signos dessa juventude que retrata instantaneamente. São filmes que diferem tanto em conteúdo quanto na forma. De um lado o artifício escancarado, o distanciamento brechtiano, e do outro a fusão incrível entre dimensão ficcional e olhar documentarista (romance e crônica), entre encenação naturalista e construção narrativa fragmentária (e, sob certo aspecto, anti-realista). Não se trata aqui de enaltecer Elefante às custas do desmerecimento de Dogville – até porque o filme de Van Sant não precisa disso, fala por si mesmo –, mas para quem assistiu aos dois filmes em menos de 24 horas, a comparação é inevitável.

É possível que Elefante tenha uma passagem discreta pelo grande público, não raro encontrando detratores pelo caminho – algo perfeitamente normal, em se tratando de um filme com tamanho vigor estético e conceitual, que aborda um tema ultra-complexo sem a pretensão de estar acima de sua compreensão, mas sim buscando se colocar o mais próximo que puder, mais especificamente a um palmo de distância do rosto ou da nuca de quem protagoniza aquele conjunto de situações. Justamente aí, onde se põe em cena a imagem mais recorrente de Elefante, ou seja, aqueles travellings pelos corredores do colégio acompanhando um dos jovens do filme sem qualquer distanciamento crítico, justamente aí que nenhuma tese jamais chegou; ninguém jamais ousou ver-ouvir o problema tão de perto. Ao rechaçar a falsa aproximação e mergulhar de cabeça no universo da high-school americana, sem esquecer de manter olhos e ouvidos bem atentos, Van Sant elaborou uma mise-en-scène inédita, de raríssima coerência estético-conceitual. Elefante sem dúvida alguma assusta, mas sem desabar numa visão catastrofrista e inútil: sua verdadeira contribuição é de ordem construtiva, e a construção em jogo é o sentimento de uma geração (com seu modo particular de percepção do tempo, com sua não-historicidade, com seu universo simbólico multifacetado). Se no fundo nenhum filme é obrigatório, por se tratar, em última instância, apenas de um filme, digamos então que Elefante é no mínimo muito importante – e que não é definitivo porque não quer ser.


Luiz Carlos Oliveira Jr.
Clouds taste metallic

Enfim, Elefante. Quase um ano após sua passagem triunfal em Cannes, Elefante finalmente está entrando em cartaz no Brasil. Bom para nós: (re)veremos quantas vezes nos for possível, pois o filme possui uma riqueza visual e discursiva que realmente obriga a revisão. Elefante aborda um fenômeno que, apesar de inesgotável na sua variedade de peças, costuma dar margem às mais simplórias tentativas de explicação. Mas Gus Van Sant foge das teses e mergulha de cabeça no espaço que acolhe o filme, disposto a ver e ouvir o máximo possível, aguçar os sentidos e evitar idéias acabadas. Sua obra-prima é tanto um exercício vigoroso em torno das possibilidades do dispositivo quanto a construção cuidadosa de uma moral do olhar. Assim como Godard afirma a necessidade de filmar a partir de um "ponto de vista mineral", Van Sant rechaça qualquer instância predicativa em sua mise-en-scène, optando por um jogo de proximidade (leia-se imersão) e significação primária (apreensão de formas, volumes, deslocamentos). Em se tratando de um filme que culmina num massacre aos moldes do ocorrido em Columbine, isso não é coisa simples.

Antepassados. Dois filmes influenciaram bastante Gus Van Sant. O primeiro deles é a obra homônima de Alan Clarke, média-metragem que se passa na Irlanda do Norte e foi realizado em 1989 para a BBC. Mesmo se referindo a outro contexto, o Elephant de Clarke apresenta, além da narrativa picotada de que Van Sant fez extraordinário uso em seu filme , a difícil temática da violência praticada por jovens. Em Elefante, a estrutura narrativa fragmentada, que mostra o mesmo evento sob diferentes pontos de vista e sem manter sua linearidade no tempo, corresponde à impossibilidade de uma visão global e à construção de um sentido moderno de temporalidade, a fragmentação impedindo uma ordenação causal (e simplista) dos fatos. Outro filme fundamental para a composição visual e estrutural de Elefante foi High School, de Frederick Wiseman, um dos grandes nomes do "cinema direto". O filme de Wiseman, de 1968, compõe - com imagens marcantes e de inusitada beleza - um vasto painel em que situações individuais se confrontam com a rigidez geométrica do modo de funcionamento institucional. High School efetua uma sondagem de espaço muito parecida com o trabalho de Gus Van Sant ao lado de Harris Savides (brilhante diretor de fotografia de Elefante) e Leslie Shatz (responsável pelo som): os planos fechados, o interesse por todo e qualquer som ambiente (o som de Elefante é expansivo, traz para um mesmo local ruídos e vozes de toda parte), a câmera percorrendo a escola como se fosse uma sonda introduzida num organismo vivo, a observação de situações cotidianas diversas (sala de aula, palestras, ginástica, refeitório, corredores), a atração despertada pelos adolescentes (o que leva a câmera a praticamente querer colar neles). Embora Elefante tenha cenas em outras locações (algumas delas fundamentais, como o giro de 360º no quarto de Alex), seu lugar de condensação é na escola. Lá prevalecem planos alongados - muitas vezes em tom documental - que fazem surgir toda uma tipologia relacionada ao universo estudantil norte-americano: um desfile de estereótipos que precedem o próprio filme e compõem um imaginário que Van Sant preferiu deixar intacto (no sentido de não negá-lo nem tentar decodificá-lo).

Transparência do mal. No filme Tudo É Brasil, de Rogério Sganzerla, Orson Welles evoca a parábola do grupo de cegos em que cada um toca uma parte de um elefante e diz saber como aquele objeto é na sua totalidade. As respostas saem equivocadas, nenhum dos pedaços é suficiente para a apreensão do todo. Portanto, conclui Welles, não se pode conhecer um país visitando somente uma de suas partes - é preciso estar em muitos lugares. Essa parábola budista, segundo Gus Van Sant, também repercutiu no conceito de seu filme. A câmera de Elefante penetra com pouca profundidade de campo nos corredores de uma típica high school, somente focando o que está próximo dela, precisando quase tocar os objetos que quer mostrar, como se estes precisassem ganhar relevo para virar imagem. A fluidez da sua movimentação realça um princípio de ambiência, de captação do ritmo daquele espaço, com sua dinâmica de cores, formas, texturas, signos. Nos corredores da escola se acha uma intensa circulação de corpos cuja relação entre si - de aparência, nada de interioridade esquemática - não fomenta psicologismos (o filme flagra a dificuldade de qualquer certeza através dos signos exteriores - basta pensar na discussão sobre "olhar para alguém na rua e tentar descobrir sua opção sexual"). Da mesma forma, a não fixação do ponto de vista (entendido aqui tanto como posição de onde se vê quanto como local de produção do discurso) exprime não só a recusa a uma perspectiva (o que implicaria distanciamento), mas também a afirmação da inviabilidade de uma reconstituição definitiva do episódio (o que alguns "erros" de continuidade insistem em nos lembrar quando da repetição de uma cena a partir de um novo ponto de vista).

Kids. Desde seus primeiros filmes que Gus Van Sant se aproxima do jovem munido muito menos de julgamentos do que de carinho e compreensão (sem ignorar uma dose de fetichismo). Gênio Indomável e Encontrando Forrester, duas investidas no enredo romântico de auto-superação e transformação, são belíssimos filmes sobre jovens ultratalentosos recebendo a orientação de um adulto (diálogo entre gerações absolutamente ausente no filme aqui em questão). Em Elefante não entra em cena um rito de passagem, como nos clássicos filmes de high school, mas simplesmente uma passagem - de corpos, de forças, de fumaça, de nuvens. Jean Epstein, que nos anos 20 fez um cinema "impressionista", já dizia que "os belos filmes são feitos de fotografias e céu". É com um céu em que passam nuvens velozmente (refrão visual de toda a carreira de Gus Van Sant) que Elefante começa e termina. O céu, nuvens, impressões, uma fumaça negra que se mistura às nuvens e depois passa. Tudo passa, principalmente enquanto se é adolescente. E Van Sant não esqueceu disso quando virou adulto.

Luiz Carlos Oliveira Jr