quarta-feira, 26 de setembro de 2007

As incertezas do amanhã



Perguntado pela atriz Ellen Burstyn, numa reunião que antecedeu as filmagens de “Alice não mora mais aqui” (“Alice doesn’t live here anymore”, 1973), sobre o que ele, Martin Scorsese, conhecia sobre as mulheres – pois Ellen achava seus filmes anteriores muito masculinizados – o diretor retrucou espirituosamente: “Nada. Mas quero muito aprender”. E assim foi.
Talvez por ter sido convidado a dirigir um filme que já tinha uma atriz principal, um roteiro definido e que, na verdade, deveria ter sido dirigido por Francis Ford Coppola, conforme era o desejo inicial dos estúdios, “Alice não mora mais aqui” ocupe uma posição singular na filmografia de Scorsese. Primeiramente, temos uma mulher como personagem principal, característica destoante da grande maioria de seus filmes. Mas, sobretudo, o longa é um “road-movie”, não possuindo em sua construção, como em outros filmes do diretor – só para citar alguns: “New York, New York” (1977), “Taxi Driver” (1976), “Cassino” (1995) – uma cidade que se dimensione como figura dramática, interagindo como realidade pulsante no encontro com as demais personagens, ainda que tenhamos, como uma espécie de leitmotive, a determinação da personagem principal em chegar a Monterey. Porém, Monterey em nenhum momento adquire uma tangibilidade transformadora para Alice, nem se interpõe como um espaço urbano relacional, é tão somente uma palavra-chave que remete a um passado envolto numa névoa de inocência e felicidade.
“Alice não mora mais aqui” é um filme de busca, renascimento, é um filme de entre-lugar. Alice se confronta com várias possibilidades de reconstrução de uma identidade obstruída por anos de um casamento de conflitos e de distanciamento mútuo. E ao se lançar impetuosamente na reconquista desse passado, Alice se depara, paradoxalmente, com a abertura de um futuro a espera de ser desbravado, como as desérticas paisagens rodoviárias do meio-oeste americano. Alice é a feminização do pioneiro. É o velho homem americano na imensidão solitária da conquista de um espaço indômito, e que somente neste périplo se desvenda. Dentro de uma perspectiva de afirmação feminista dentro do cinema, Alice desenvolve a grandiosidade libertária desencadeada pela Jill de Claudia Cardinale em “Era uma vez no oeste” (“Once upon a time in the west” – 1968) de Sergio Leone.
Numa tentativa de burlar a imposição do estúdio para que o filme tivesse um “happy end”, Scorsese não encerra o filme na apoteótica reconciliação de Alice e David (Kris Kristofferson) na lanchonete, mas num “plano-síntese” no qual Alice caminha ao entardecer com seu filho (importante observar que David não caminha ao lado deles) em direção ao seu sonho, simbolizado na cena pela placa com a inscrição “Monterey”. Assim, com o movimento de Alice se afastando da câmera em direção à placa, Monterey deixa de atuar como a força atrativa de um passado que não mais existe, se transfigurando, então, na energia motriz compelindo-a para um futuro a ser continuamente conquistado.

Fábio Dalpra

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