quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Trama dos Desenganos


O Desprezo é de certa forma, uma unanimidade quando se trata da obra de Jean-Luc Godard. Um filme que se sustenta por diversas babéis e formas expressivas e que não deixa ainda de ser um “filme político”, à sua maneira, à maneira do franco-suíço. Político por qual motivo?Por mostrar um roteirista que praticamente entrega sua obra (sua esposa) nas mãos de um produtor cínico e prepotente, com delírios de grandeza. Sim, neste filme há de uma forma discreta e modernamente laica, a visão do “pacto de Fausto” transportado para o ambiente dos jogos de forças que regem as relações entre arte e mercado. O diferencial é que Picolli, o roteirista, acaba não recebendo nada em troca, apenas uma consciência desenganada.
Como já dito aqui, trata-se de um homem moderno que é conivente que a questão monetária fale sempre mais alto, afinal ele não queria realizar o filme em questão, mas acaba decidindo por fazê-lo para atender aos caprichos da esposa(Brigite Bardot). Contudo, no momento mesmo em que opta por entrar no projeto, ele também a perde(ironicamente), como se já soubesse que isso tragicamente ocorreria.As relações de força desse mundo parecem estar além do indivíduo que é apenas uma peça frágil da engrenagem.
Mas o principal é que Fritz Lang, o grande diretor alemão, será quem refilmará a Odisséia e, para tanto, apostará nos valores clássicos da grande obra de Homero. Valores esses que se chocam com esse “novo mundo”, o que faz com que esse roteirista, ao contrário do herói Ulisses, não se reconheça na obra. O homem moderno ou contemporâneo é hesitante, neurótico e, por vezes, até mesmo covarde. É, dessa maneira que ele entrega Camile, quase generosamente, para seu produtor, recusando a luta contra os Deuses do Olimpo, renunciando assim a uma batalha em que poderia afirmar sua alma, seu espírito. E é essa mesma ausência de postura que gera o tal desprezo em Camile.
Os Deuses do Olimpo nos fitam todo o tempo em O Desprezo. Fitam a obra, o espectador, o roteirista de uma forma um tanto melancólica, como uma parte humana nossa que lamenta a ausência de um combate. O grande achado de Godard consiste em transformar as imagens (e a trilha) numa longa e infinita meditação poética sobre esse hiato espiritual. O filme é expressivamente perfeito e até elegíaco, como se o cinema devesse filmar a morte de certo classicismo, de certo cinema e também de certo paradigma de homem, que se encontra agora entregue à sua própria fragilidade, à instabilidade do tempo e à supremacia de "Mamon", o Deus do império monetário.
Como encontrar tanta beleza rara, afinal por se tratar mesmo de um filme de uma poesia tão avassaladora? Na possibilidade, penso eu, de aproximar tempos tão distantes (o clássico grego e o atual), de vasculhar o eterno “perdido” que há entre eles. Por uma busca nesse hiato espiritual, através de um diálogo impossível para o casal em crise, mas afinal possível para o cinema, como atesta a tomada final, em que Lang filma no silêncio o infinito das paisagens ao sol, numa imagem que não se sustenta e termina por se apagar aos nossos olhos como um sol que nos "cega".Como bem disse o próprio Godard a respeito desse filme: "Cada um interpreta o outro por sua própria ótica,mas o cinema os reinterpreta"(eu aqui, parafraseio).
O Desprezo, um filme de iluminação solar passado grande parte do tempo no espaço da ilha de Capri,com seus raios,lança clara e contundente luz sobre os desenganos da História, sobre nossos próprios desenganos no e através do tempo.Resta-nos a poesia da procura nesse além do tempo, no que escapa à atenção de Lang, do produtor e do roteirista, dos feitores do filme dentro do filme. É aqui que o cinema de Godard se afirma como uma prece.
Alessandro Coimbra

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Grandes lembranças


Não, eu não revi por essas semanas, mas este filme me provoca grandes lembranças, "dejá vus" eternos. O cinema americano passava por uma revisão nos anos sessenta e, mesmo assim, Bonequinha de Luxo apostava em certo classicismo e teor romântico, embora cheio sim de deslocamentos, de fluxos imprevistos dos mais originais. Dizer que é o melhor filme de Audrey Hepburn é pouco, tanto quanto admitir que é o melhor trabalho do diretor das panteras cor-de-rosa Blake Edwards.
O que primeiramente me saltava e ainda salta à memória é o tom um tanto irônico, cheio de ambivalências lingüísticas frente ao arrivismo e às frivolidades. Mas, nem por isso, a encenação abandona sua sintonia com Audrey, o encanto das canções de Henri Mancini. Essas canções merecem um capítulo à parte, pois as cenas pareciam construídas em função da música, como se estivéssemos diante de um musical, o que esse filme, pela cadência, não deixa de ser, quanto pela disposição de colocar os corpos e as cores em trânsito e pacto com uma dimensão das mais insólitas.
Escritor gigolô conhece garota de programa. A partir desse fiapo de história, Edwards compôs uma fábula moral em chave de comédia romântica, em que o que conta não é o moralismo fácil, mas a disposição dos protagonistas de assumirem seus destinos, suas vidas.O tom do filme encontra-se nesses constantes vai e vens entre o que há de mais ácido e o que há de mais lírico, muitas vezes ambos num mesmo momento, numa mesma cena(o que ainda é originalíssimo), o que remete a outro grande clássico do cinema do mesmo período, chamado Se meu apartamento falasse( Billy Wilder) e a certos trabalhos de Almodóvar.
Pode ser colhida de minha memória a percepção de um aproveitamento perfeito das pouquíssimas locações (o prédio onde moram os personagens e as ruas de Nova York), sem o chamado apelo de cartão - postal.Ou seja, como dar o máximo das cenas, o máximo de si mesmo em algo extremamente concentrado ao limite da exigüidade, como se vários corpos e objetos ocupassem o mesmíssimo espaço à maneira de certa pintura moderna, com uma tensão e convivência que possibilita os deslocamentos.
Sim, Edwards repetiria o estratagema também brilhantemente em o Convidado bem Trapalhão com sua ambiência entre o mais estritamente real, ao ponto da “caricatura” expressionista, e o deslize para o mais “fantástico”, em sua festa onírica de cores que brincam de ser, de existir. Assim, o cinema desse período ensinava como reconstruir uma narrativa fluídica, mas tonificada em um espaço de intensidade criadora, que por força de observar tão intensamente e clinicamente o real concentrado, retira-lhe novas camadas, transborda-o por completo, gerando uma atmosfera de magia e delírio em seus personagens, misce en scéne e andamento (mesmo que o tom cáustico, em suas constantes pinceladas, não abandone jamais a obra).
Há, portanto, a sobreposição de um novo mundo em que Blake Edwards, demolidor por excelência, se interessa em colocar o humano em xeque, em implodir esses mundos excessivamente adultos, seriamente corrompidos e mecânicos, recriando-os pela crença na construção (“neo-construção”) “pura" do olhar, na força de se ver as coisas como se fosse pela primeira vez e já criticamente ,como a criança petulante de Miro, nesse fluxo contínuo que vai das pré-formas às novas formas e dessas mesmas para as pré-formas, novamente.Mas tudo isso sem abandonar o “esquema narrativo primeiro”, aquele que possibilita que haja o “princípio, meio e fim” habituais.
Tal cinema acaba por gerar um rigoroso estudo crítico de padrões de comportamento ao mesmo tempo em que aposta no resgate de um estado virginal primeiro de tudo, algo desse estado pré-adâmico em que contam as brincadeiras algo marotas, um riso desabusado, as surpresas do acaso, as pilhérias de Freud e as “superfícies” de Lacan, em que a poesia mais pura, originária é responsável por um cinema livre, de raro frescor, com música e imagens entrelaçados por todos os poros para compor certo encanto primal, instalado como resistência à acidez de costumes, do que é fixo e estagnado.
Inesquecíveis lembranças que me fazem pensar em Bonequinha de Luxo como aquele filme que cria curvas, flexibilidades para injetar forças novas no que poderia ser “mais um filme romântico”. Numa obra que trabalha em cima de todas as potencialidades das arestas narrativas, partindo de uma herança de cinema que vem de Chaplin e vai desaguar num rio de Fellini,tendo passado pela delicadeza e ironia de Lubitsch e Cukor, já com a cara na renovação profunda do cinema do período, um cinema sem aprisionamentos narrativos, que seria esse dos anos 60(nouvelle vague, o mesmo Fellini), sem abdicar jamais de seu charme classicista.
A ver e rever sempre!
Alessandro Coimbra

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Crime Contemporâneo



Crime Verdadeiro foi uma obra pouco compreendido pelo público a seu tempo, um tanto por conta de sua roupagem policial. Portanto, o indivíduo vai esperando um filme e sai frustrado com o resultado.Isso ocorre porque Crime Verdadeiro não é exatamente um filme policial, mas um drama sobre justiça e ética. Mas, mais do que isso, sobre as relações existentes entre exclusão social e exclusão existencial.
Clint faz um jornalista teimoso que não se contenta com a aparência dos fatos.Como sua vida privada é um fiasco (seu relacionamento com a esposa e filha), ele tenta compensar, preocupando-se em demasia com as questões públicas.
Por ser muito julgado em vida, ele sabe quão delicados são os juízos que fazemos das coisas. Normalmente a chamada justiça e os cidadãos não conseguem ir além das aparências e um julgamento precipitado revela uma total ignorância.
Neste filme, um cidadão é condenado à pena de morte por suposto roubo e assassinato. Clint não crê no senso comum, tem horror às unanimidades e às opiniões em massa. Seu trajeto é o de ir na contra- corrente, negando a ditadura da imagem.
Em Crime Verdadeiro, estamos diante de uma narrativa precisa, que só põe em cena o que possa ser essencial e a sugestão do mesmo, não se preocupando com o espetaculoso. Trata-se de uma aula de limpidez de linguagem. Mas não se trata de um método frio. Cabe a ele fazer do cinema a arte da indagação. Afinal, o que é uma imagem, sua real legitimidade e qual o seu poder na sociedade de massas?
Há um trabalho interessante com o emprego da cor verde, que significa sonho na cabeça da criança, filha do pai que está sendo condenado. Ela pede um lápis de cor verde para desenhar, enquanto conversa com o pai na cela. O lápis de cor havia sumido. Então, há uma elipse e vemos o verde na moldura de um quadro burguês.Ou seja, a burguesia engessou o sonho,aprisionando-o em uma moldura. O sonho das minorias é tratado com total descaso pela justiça.
Novamente veremos o verde, desta feita como iluminação na última e marcante cena final, que ainda questiona: Os sonhos para as minorias são possíveis em uma cultura displicente, coisificante e de massas? Qual seria hoje o sentido de qualquer espírito natalino, se a exclusão indiscriminada do outro faz parte dessa mecânica de produção de falsas verdades, de simulacros, que querem compensar realidades por imagens, o concreto, o fundante pelo virtual?
O diretor é muito lúcido diante de tão difícil tema e trata as cenas sem nenhum apelo retórico.Notemos até mesmo que a cena da redenção, da inocentação do criminoso não é mostrada(ocorre fora de campo após um congelamento da imagem), ou seja, os verdadeiros empenhos de justiça e os eventuais milagres são coisa rara. Mas, mais do que isso, estão fora de ângulo, não cedem à sua fiel reprodução mimética,escapando a ela. Portanto, não pertençem nem ao cinema e nem ao mundo corrido e suas técnicas de reprodução.
Tal protagonista vivido por Clint deve, então, seguir seu trajeto sem olhar pra trás, pois até mesmo para ele esses fatos podem não dizer respeito, estabelecendo uma real conexão. Assim,ele carrega consigo o peso de suas próprias contradições.
Em Crime Verdadeiro, Clint-personagem pode enxergar com clareza as contradições da justiça e até parcialmente resolvê-las, pois não pode resolver as suas próprias.Por outra,aquele que sabe bem o que o crime é, o que a injustiça, de fato, significa, está definitivamente excluído das coisas. Como na última tomada, em que vai para o “limbo”, para o extra-campo(à direita da tela),em sentido inverso ao movimento daquelas pessoas(à esquerda da tela),enquanto ao som do mais belo jazz cortante, triste e crepuscular, permanece solitária uma árvore de Natal, estática,anônima, no entre-lugar. Indagativa?
Alessandro Coimbra