domingo, 2 de setembro de 2007

Clint e a América da resistência



Clint Eastwood decide mergulhar na poesia uma vez mais, uns bons anos após as “Pontes de Madison”, que era, até então, seu filme mais poético.”Menina de Ouro” é, na verdade, um filme-armadilha. Primeiramente, porque ele nos aparece como um “boxer” filme. Depois temos a presença de um drama ou até mesmo de um melodrama.Mas vê-lo por essas vias é não observar as entrelinhas, o subtexto sempre sutil. Clint brinca com os gêneros para explorar, de fato, o que escapa a eles, qual seja, a poesia das relações.
Na primeira hora de filme, o que temos é uma descrição um tanto “aventuresca” dos tipos sociais que mais lhe interessam, ou seja, aqueles que invalidam o chamado “sonho americano”, os chamados deserdados da América. É pra eles que Clint assesta suas lentes: a menina que guarda restos de comida do restaurante onde trabalha para depois matar sua fome, o ex-lutador que está sempre com as meias furadas, a mesma menina, que guarda moedas para realizar um sonho,... Essa América que aparece é da orfandade e também, talvez por isso mesmo, a que mais luta para preservar sua dignidade.
Depois da primeira hora, Clint-diretor começa a deixar bem claro seu sentimento quase “paternal” por seus personagens, a exalar extrema compaixão de suas lentes, pelo cuidado com a escolha dos ângulos, pela necessidade de transpor para seus personagens o ato de protegê-los de certa “violência do mundo” e de “alimentar” quem não tem sonhos, ou bem, perspectivas.Morgan Freeman, nesse sentido, incentiva o jovem rapaz lutador a crer, independente do aval de suas próprias forças, preservando assim sua decência ao invalidar a “nova ordem mundial”.E é o mesmo Freeman quem dá a ponta pé inicial para o treinamento da menina vivida por Swank (magistralmente).E, aliás, que atriz, que atores!
A principal violência, no entanto, não é a física, mas a “moral”, a que incide sobre o campo das relações.Clint-personagem precisa transcender seus limites como pai e ele tenta reaver seu relacionamento com a filha através das cartas que sempre voltam.A família de Swank, por sua vez, é o retrato de certa América reacionária, de alma provinciana e incapaz de ir além da indiferença.
Mas seria Menina de Ouro um filme moralista?À sua maneira, mais do que isso é um filme de resistência do humanismo.Clint relaciona-se mais e mais com Swank como resistência à mediocridade do mundo em que ela se encontra, para ir além de um vínculo sanguíneo de fracasso.E não é a família o micro-cosmo dessa sociedade doente?Ou seja, o que existe no filme é a necessidade de estabelecer novos gerenciamentos de contato, novas relações extremas que compensem a falha da sanguínea e, principalmente, da sociocultural (afinal, Clint-diretor trata da América dos deserdados).
É nessa esfera, então, que morará a poética, nesse lugar onde ultrapassamos o dogma religioso (a lembrar as conversas entre o protagonista e um padre) e o dogma cultural (amar quem não pertence à sua esfera privada).Para o personagem de Clint, abrir mão de Swank não é apenas dispensar um dogma, mas na verdade, significa abrir mão de parte considerável de sua felicidade pessoal, pois para ele, permancer com ela seria um grande lucro.Mas Swank prefere agora deixar esse mundo, tendo já cumprido o que lhe coubera.
Esse ponto merece especial atenção no filme: Swank não nos aparece, em momento algum, como uma sofredora mor. Pelo contrário, ela havia conquistado muito do que queria e, tendo já cumprido esse “objetivo”, ou seja, ir até o fim dela mesma, já poderia partir. A decisão de Clint deve passar por esse tipo de entendimento (a última conversa de Freeman com ele elucida esse ponto) e, nesse sentido, os últimos olhares que ele e Swank trocam ultrapassam a compaixão e os olhos dela brilham ao saber que ele realizaria o que ela tanto desejava.
Em “Menina de Ouro”, faz-se necessário reparar o péssimo gerenciamento do mundo social e das relações através de uma certa renúncia. É preciso ser resistente à derrocada de qualquer humanismo no mundo. É preciso ir além da religião, dos laços de sangue, ser poeta na alma (não à toa, o protagonista tem sempre à mão um livro do poeta Yeats), crer em esferas de relações que ultrapassem a esfera mais privada e previsível. Enfim, crer num “algo mais”, que contradiga essa América da “nova ordem mundial”, engessadora de perspectivas fundantes (e fundamentais) parece ser a aposta central de Menina de Ouro, personagem e filme.
Nessa profundidade do olhar e nas relações que passam pelo inexplicável mora a grandeza da obra. E como ser tudo isso com tamanha exatidão? A resposta encontra-se nas imagens de “Menina de Ouro”, um filme que cresce a cada revisão como talvez o maior de seu diretor. Se não, com certeza, o mais sóbrio (junto a Sobre Meninos e lobos).
Alessandro Coimbra

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