terça-feira, 16 de outubro de 2007

Grandes lembranças


Não, eu não revi por essas semanas, mas este filme me provoca grandes lembranças, "dejá vus" eternos. O cinema americano passava por uma revisão nos anos sessenta e, mesmo assim, Bonequinha de Luxo apostava em certo classicismo e teor romântico, embora cheio sim de deslocamentos, de fluxos imprevistos dos mais originais. Dizer que é o melhor filme de Audrey Hepburn é pouco, tanto quanto admitir que é o melhor trabalho do diretor das panteras cor-de-rosa Blake Edwards.
O que primeiramente me saltava e ainda salta à memória é o tom um tanto irônico, cheio de ambivalências lingüísticas frente ao arrivismo e às frivolidades. Mas, nem por isso, a encenação abandona sua sintonia com Audrey, o encanto das canções de Henri Mancini. Essas canções merecem um capítulo à parte, pois as cenas pareciam construídas em função da música, como se estivéssemos diante de um musical, o que esse filme, pela cadência, não deixa de ser, quanto pela disposição de colocar os corpos e as cores em trânsito e pacto com uma dimensão das mais insólitas.
Escritor gigolô conhece garota de programa. A partir desse fiapo de história, Edwards compôs uma fábula moral em chave de comédia romântica, em que o que conta não é o moralismo fácil, mas a disposição dos protagonistas de assumirem seus destinos, suas vidas.O tom do filme encontra-se nesses constantes vai e vens entre o que há de mais ácido e o que há de mais lírico, muitas vezes ambos num mesmo momento, numa mesma cena(o que ainda é originalíssimo), o que remete a outro grande clássico do cinema do mesmo período, chamado Se meu apartamento falasse( Billy Wilder) e a certos trabalhos de Almodóvar.
Pode ser colhida de minha memória a percepção de um aproveitamento perfeito das pouquíssimas locações (o prédio onde moram os personagens e as ruas de Nova York), sem o chamado apelo de cartão - postal.Ou seja, como dar o máximo das cenas, o máximo de si mesmo em algo extremamente concentrado ao limite da exigüidade, como se vários corpos e objetos ocupassem o mesmíssimo espaço à maneira de certa pintura moderna, com uma tensão e convivência que possibilita os deslocamentos.
Sim, Edwards repetiria o estratagema também brilhantemente em o Convidado bem Trapalhão com sua ambiência entre o mais estritamente real, ao ponto da “caricatura” expressionista, e o deslize para o mais “fantástico”, em sua festa onírica de cores que brincam de ser, de existir. Assim, o cinema desse período ensinava como reconstruir uma narrativa fluídica, mas tonificada em um espaço de intensidade criadora, que por força de observar tão intensamente e clinicamente o real concentrado, retira-lhe novas camadas, transborda-o por completo, gerando uma atmosfera de magia e delírio em seus personagens, misce en scéne e andamento (mesmo que o tom cáustico, em suas constantes pinceladas, não abandone jamais a obra).
Há, portanto, a sobreposição de um novo mundo em que Blake Edwards, demolidor por excelência, se interessa em colocar o humano em xeque, em implodir esses mundos excessivamente adultos, seriamente corrompidos e mecânicos, recriando-os pela crença na construção (“neo-construção”) “pura" do olhar, na força de se ver as coisas como se fosse pela primeira vez e já criticamente ,como a criança petulante de Miro, nesse fluxo contínuo que vai das pré-formas às novas formas e dessas mesmas para as pré-formas, novamente.Mas tudo isso sem abandonar o “esquema narrativo primeiro”, aquele que possibilita que haja o “princípio, meio e fim” habituais.
Tal cinema acaba por gerar um rigoroso estudo crítico de padrões de comportamento ao mesmo tempo em que aposta no resgate de um estado virginal primeiro de tudo, algo desse estado pré-adâmico em que contam as brincadeiras algo marotas, um riso desabusado, as surpresas do acaso, as pilhérias de Freud e as “superfícies” de Lacan, em que a poesia mais pura, originária é responsável por um cinema livre, de raro frescor, com música e imagens entrelaçados por todos os poros para compor certo encanto primal, instalado como resistência à acidez de costumes, do que é fixo e estagnado.
Inesquecíveis lembranças que me fazem pensar em Bonequinha de Luxo como aquele filme que cria curvas, flexibilidades para injetar forças novas no que poderia ser “mais um filme romântico”. Numa obra que trabalha em cima de todas as potencialidades das arestas narrativas, partindo de uma herança de cinema que vem de Chaplin e vai desaguar num rio de Fellini,tendo passado pela delicadeza e ironia de Lubitsch e Cukor, já com a cara na renovação profunda do cinema do período, um cinema sem aprisionamentos narrativos, que seria esse dos anos 60(nouvelle vague, o mesmo Fellini), sem abdicar jamais de seu charme classicista.
A ver e rever sempre!
Alessandro Coimbra

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