quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Uma arte de somas


David Conenbergue, usualmente e simplistamente conhecido por realizar filmes “bizarros”, certamente de rótulos desse tipo corre quando se trata de Marcas da Violência. A rigor, toda sua obra se sustenta por uma rara inquietação, por buscar aquele lado pouco comentado da relação do homem com a cultura (os médicos de Gêmeos, o cientista de A Mosca,...) Marcas da Violência seria, então, um filme mais convencional? De maneira alguma. Cronenbergue opta, dessa feita, por apontar o diferencial inscrito no mesmo, a violência como algo tão “natural” e constituinte da cultura, que quando se manifesta de forma um pouquinho mais óbvia, chega a incomodar, a despertar um mal estar. Esse mal estar em grande parte advém de uma recusa da chamada civilização do “sonho americano” em assumir que suas bases estão fincadas em grande parte em atos de violência. Temos um lar e um empresário que termina, em dada ocasião, em se revelar mais brutal do que o habitual de sua dia-a-dia como forma de defender a extensão de sua propriedade, seu negócio.
Estaremos, a partir daqui, diante de um homem aparentemente com dupla identidade e com uma história cindida em duas partes, em dois tempos: uma com histórico de crime e violência e outra, como cidadão pacato de uma comunidade. Cronenbergue nos mostra que não existe cidadão estritamente convencional, ”comum” e que violência e civilidade estão em pleno acordo como essa camada formadora de uma cultura. Trata-se, no fim das contas, de um western com roupagem nova, algo mais contemporâneo e essa obra fincada nas bases de um gênero tão americano (embora universal), demonstra-se também pela destreza nos cortes, pelo tom direto no qual se afirma um mito nascedouro de formação, a extrema concentração e concisão a todo tempo, a poesia das paisagens discretas... Por outra, há o ajuste de contas do protagonista com seu passado como forma de fazer por merecer o Graal do espírito, o galhardão que lhe permita inserir-se num tempo e espaço além do passado, etc. Dessa forma, Cronenbergue “estuda” uma cultura imergindo nas leis mais básicas de formação de suas raízes, por meio da linguagem que propiciou seu desenvolvimento e estruturação universalmente.
Notemos que as cenas de sexo carregam uma expressividade de grande rubustez e pulsão, o instante em que o filho do protagonista reage a um excesso de pressão de um “colega” de escola de maneira atavicamente análoga ao pai com o momento memorável em que o pai lhe chama a atenção, dizendo algo do tipo “aqui nós não resolvemos as coisas a pancadas”, ao que o filho responde “é, aqui nós resolvemos a bala”, ao que se segue um tampa na cara do pai no filho, em que esse deixa a sala todo pungido, enquanto aquele, igualmente pungido, se defronta com a culpa demonstrada em pouquíssimos segundos pelo diretor. Aliás, toda essa pequena cena é uma aula de concisão nesse mundo de significados expostos. E não podemos nos esquecer também do momento no bar em que um amigo do protagonista conta que seu casamento se iniciou com uma garfada inserida por uma mulher em seu corpo.
Estaremos, pois, diante de uma arqueologia? Penso que sim, de uma arqueologia que se interessa, sobretudo, pelo estudo dos gestuais, dos rostos diretos,por vezes ambíguos, e, em última instância, pelo humano, demasiado humano, como atesta o memorável final. Por outro lado, em nenhum momento podemos dizer que há no filme um elogio à violência. Os rostos afetados por balas são captados em closes quase congelados, revelando, ao contrário dos brinquedos de Tarantino, um forte teor moral. Mas o que há, sobretudo, é cinema em altas doses, com o homem, da forma mais exata e concentrada possível, em sua constituição com o espaço ao seu redor e sua relação simbiótica com os objetos a seu alcance.
Marcas, afinal, é um filme que está sempre à margem do roteiro e nega toda classificação. Filme convencional? Não. Elogio da violência? Pelo contrário. Crítica da barbárie?Não, exatamente. Existem formas que se provam, que se evidenciam como “fatos brutos” vivos e um entorno que reage a isso,seja ética,seja emocionalmente. Pois há altas cargas de emoção, sobretudo ao final quando a família ultra - discretamente aceita o homem de volta: a filha pequena arruma o prato do pai na mesa, o filho timidamente coloca o prato de comida próximo a ele e, por fim, sua esposa lhe fita com olhos molhados sem comunicar explicitamente de seu perdão, mas ele está lá. Faz-se necessário agora crescer, amadurecer esse amor, diz a cena da forma mais lacônica e delicada, o que justifica sua filiação ao western, pois ora, se trata aqui das mesmas virtudes de um John Ford, muito embora a robusta tonalidade do restante da obra em seu confronto com o mundo me faça pensar muito em Hawks(o que novamente ratifica o aspecto de “gênero”).
Entre o peso do corpo nas tarefas, que é viver (Hawks) e o peso do sangue e das raízes (Ford), reside aquele equilíbrio - desiquilíbrio constitutivo no corpo das relações homem/cultura, típico ao enigma Cronenbergue.Dessa soma, resulta o fascínio exercido por Marcas da Violência.
Alessandro Coimbra

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Notas sobre Peixe Grande,de Tim Burton




Um ótimo artista não precisa relatar o “mundo tal como é” para ser relevante.Essa realidade que muitos procuram aparecem das maneiras mais insuspeitas.Em um sonho, por exemplo.Para Tim Burton, o cinema é um criador de mundos.Toda a realidade é filtrada pelas visões de um homem.No seu caso, de um artista.
A história de Peixe Grande pouco importa.Para esse filme, o que conta é saber reconhecer uma imagem bem concebida e pessoal.A maioria das imagens desse filme existe na cabeça dos personagens, como memória ou como visão.
Alguém parece ter ensinado a Burton que o real só passa a existir a partir de algo subjetivo, que é o olhar humano.Em Peixe Grande o olhar é tudo.Não é a fantasia que se encaixa na realidade.O mundo real é que deve apreender o olhar, porque todo real existe sob a visão.Romântico?Visionário é uma palavra que se encaixa melhor.
Nesta obra, o onírico e a realidade são interdependentes, assim como o “homem comum” precisa daquele que não o é, e vice-versa.A comunhão desenvolta de ambas as dimensões é uma das temáticas desse filme.O real precisa do imaginário.O imaginário do real. E no fim, atravessa-se as linhas e aquilo que aparecia como sendo mera quimera ou imaginação é, de fato, a instãncia mais concreta,como o ponto privilegiado dessa encruzilhada de intercâmbios, dos encontros mais insuspeitos:os tais "personagens da imaginação" comparecem ao enterro do protagonista como seres de carne e osso.Portanto, quem afinal "traiu a realidade".Nós,durante o filme todo?
Com o término da obra, ficamos com fortes imagens na cabeça.Imagens essas, produto da extrema originalidade de um diretor, que consegue ser um demiurgo,um criador de mundos, mesmo se tivesse que contar uma história convencional e sem magia. Mas essa magia está no mundo interno de cada personagem concebido como memória ou como visão projetada. Seja o estranho artista de circo, seja o gigante atrapalhado, seja a bruxa humanizada, a bela garota-bela mulher, o poeta das falcatruas e,sobretudo,as gêmeas siamesas...Todos eles,às bordas do mundo, da tela, são necessários entre si e para o protagonista, no centro das "construções", o mais comum dentre eles, conferir sentido às coisas dadas.
Sem a criação, e nesse caso ela é a conseqüência, como já foi dito, de um mundo muito pessoal e sensível, não há real que se legitime. É preciso um filme desses para embaralhar nossa visão das coisas, como esse lugar privilegiado onde os imbricamentos se rompem, o estanque se parte e encontramos,por fim, a natureza particular, por vezes híbrida e imprevista de dados da vida.
Peixe Grande é a arte que surge pelos poros da indústria sempre óbvia.É o mundo das visões como profissão de fé em irmandade com a vida. Agora, a vida só pode deixar-se contaminar pelo olhar de Tim Burton. E a indústria também.
Alessandro Coimbra