segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O inferno, segundo Haynes, está no “normal”



A perfeição da sociedade americana é questionada em Longe do Paraíso não com o intuito de almejar a autocongratulação (como, por exemplo, Beleza Americana), mas como forma de pôr em xeque certos ideais. Não se trata de rir do imperfeito, do que não corresponde a nossos ideais de propaganda, mas de mostrar que na propalada perfeição residem mais inverdades do que suspeitamos.Mas aqui se tratam de mentiras, superfícies que refletem valores.Quais valores?
Família vista como exemplar apresenta certos desgastes.O marido não é exatamente heterossexual e sua esposa tem forte amizade com um negro jardineiro.Tudo isso dentro de um ambiente de amenidades.Assim, como quem não quer nada, como quem recria o ambiente dos anos 50 e do mestre do melodrama Douglas Sirk, Todd Haynes vai cutucando as feridas por intermédio de uma leitura do mal estar presente na Sociedade da Beleza, construída pelo próprio cinema.
Haynes, ao emular Sirk, não pretende somente fazer uma citação de cinéfilo, mas construir uma ficção que se apodera dos ideais americanos vigentes nos os anos 50(mas não só).Contudo, essa América almejada pelo filme é de hoje e de sempre. Nada mudou e a localização no tempo existe pra comprovar como certos padrões nos são ancestrais.
Nesse ponto, o filme nos oferece um jogo de proximidades e distanciamento. Não quer nos chocar.Prefere sutilmente nos abrir ferida por ferida, sem que percebamos que a loucura toda está mesma nesses ideais que compartilhamos.Utiliza-se, portanto da alusão, do tipo: É essa a sociedade que veneramos, então fiquemos com ela.Mas observemos como ela está fundada em bases de espectros, irreais.
O racismo não é visto de forma unilateral, ou seja, os negros em seus guetos também discriminam os brancos. Nós não temos em Haynes o alarde de Spike Lee, ou Beleza Americana.Com delicadeza lapidar, como se fosse um mero filme nostálgico, Longe do Paraíso, com respeito por seus protagonistas, nos torna, por fim, como participantes de um discreto, mas imenso abismo e, ao final, reencontramos nossa época(hoje), nossos condicionamentos, que deixam de nos ser exteriores.Afinal, somos nós essa imagem que atravessa décadas.
Ao recriar os filmes de Sirk (como forma de dialogar com a política das imagens), esse filme nos propõe que a Beleza padrão ao nortear nossos valores, nos joga também em uma casa de bonecas coberta de limitações, onde uma fofoca corresponde, pela força e naturalidade, a um apedrejamento e onde o casual, o mais comum é o lugar por excelência, do mais absurdo.
Belíssimo filme que confirma Haynes como um grande militante do cinema contemporâneo, muito embora não é pelo panfleto, nem pelo escândalo, que chegamos a essa “política cinematográfica”.Mas pelo que temos de mais comum e “normal”.

Alessandro Coimbra

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