quarta-feira, 19 de dezembro de 2007






O filme de estréia do diretor Orson Welles é, ainda hoje, 66 anos após seu lançamento, uma das obras mais influentes, e talvez por isso, controversas e debatidas nestes mais de 100 anos de história do cinema.
Aclamado por muitos como o melhor filme já produzido, qualquer abordagem crítica exige uma postura que se esquive tanto de uma bajulação ingênua e estéril, quanto de ataques inconsistentes e arrogantes – tendência atual de uma crítica cinematográfica cada vez mais acadêmica, despreparada e empertigada.
Um importante passo a ser dado rumo a uma interpretação mais madura da obra se consolida a partir da compreensão de que as várias inovações técnicas e estéticas advindas com “Cidadão Kane” não podem ser avolumadas – como o fazem alguns críticos e estudiosos que insistem em reduzir o filme a um exercício de virtuosismo cinematográfico. Ora, tais inovações são, tão somente, o meio instrumental para a consecução de algo maior, que seja: a grandiosidade humana que se desprende de cada fotograma. Somente desse modo “Cidadão Kane” se dimensiona na plenitude das suas virtudes e das suas limitações, como, aliás, toda obra de arte: intrinsecamente magnânima e doente.
“Cidadão Kane” narra a jornada de um jornalista na busca pelo significado da palavra proferida pelo milionário Charles Foster Kane segundos antes de morrer – “Rosebud”. Assim, através do mistério encerrado na impenetrável palavra, assistimos à reconstrução da sua vida desde a infância, com o evento que seria determinante na constituição psicológica do homem que viria a ser, até a morte – uma das mais chocantes da história do cinema, tamanha a solidão e a indiferença contidas no único gesto desencadeado por ela: uma anônima empregada que cobre seu corpo com um lençol numa noite particularmente soturna e silenciosa.
Orson Welles defere um duro golpe em duas instituições depositárias do mais arraigados valores americanos: a imprensa e a adoção irrestrita do ideário capitalista – ainda que, em nenhum momento, as críticas sejam balizadas por um viés político, mas sempre por um consciencioso humanismo. Através do “jornalismo marrom” que Charles F. Kane implanta ao assumir o jornal “Inquirer”, Orson Welles traça um sombrio retrato acerca das inumeráveis maquinações políticas e da permeabilidade a interesses escusos que se entrincheiram nos recônditos das redações dos jornais de grande circulação e penetração pública.
Charles F. Kane é sorvido progressivamente por uma solidão que enfatiza o processo de desintegração sócio-familiar desencadeado por sua imersão na esquizofrênica ordem capitalista que se expandia com a recuperação econômica dos EUA no período da 2ª grande guerra. Kane é o arquétipo do empreendedor americano, a reificação absoluta do “self-made man”. E na inexorabilidade do seu desejo de acúmulo financeiro e de poder, Kane assiste ao desmoronamento das suas relações sócio-familiares. Porém, curiosamente, o conteúdo demasiadamente shakespeariano da tragédia pessoal de Charles F. Kane impede que a mesma se restrinja à miséria da realidade americana.
Assim, para além da renovação estética do expressionismo alemão, da inovação na construção narrativa, da revolução técnica da linguagem cinematográfica, ergue-se soberana uma grande história humana, provinciana e universal como toda obra de arte. Para que escapemos, astutamente, da frieza e do esquematismo tacanho das análises puramente técnicas de “Cidadão Kane”, basta que lembremos da lição do grande mestre Roland Barthes acerca do prazer do texto: o mínimo de saber com o máximo de sabor. Assim “Cidadão Kane” deve ser fruído.