segunda-feira, 27 de agosto de 2007

A narrativa do acolhimento


A história da menina raptada por índios e a busca dos personagens para reavê-la oculta uma questão formal mais importante, uma complexidade que não está na história, mas encontra-se na maneira de filmar.
O começo mesmo do filme é de uma delicadeza explícita. O reencontro do "herói" com seu antigo amor, dessa feita casada com seu irmão. A tragédia iminente em que a família é destruída menos por culpa dos índios e mais pela ignorância do herói que, obcecado por seus ideais doentios, não consegue olhar pelos que lhe estão próximos.
Assim como ele perde sua mulher para o irmão, dessa vez ele irá perder todo seu vínculo de sangue, afinal, todo o grupo é dizimado, com exceção de Debbi(mais à frente Nathalie Wood, em pequena presença epifânica). E agora é o sangue que leva os próximos.
Assim John Ford inicia o filme com contornos de tragédia, de perda para sempre do herói que carrega consigo as contradições dessa civilização que, como pioneira tem seu projeto, mas que se torna cega e capenga por transformar sonho em pesadelo, ideal em desejo de exclusão, em racismo cego.

Porque, para Ford, quem conta são os simples do dia-a-dia. Ele já havia mencionado isso com tons de ironia em Fort Apache.

O tempero trágico de Rastros de Ódio, a exploração formidável dos espaços do Monument Valley, exprimem toda a densidade das situações, dos equívocos da civilização. Contudo, depois o filme importa menos isso que como filmar os personagens, os espaços, os objetos... E de certa forma, a tragédia não se esvai, mas o central acaba sendo uma narrativa clássicista das melhores e em termos de emoção, a melhor.
Ford não só acredita no que conta, mas tem imensa paixão por estar contando. Isso gera um amor de direção, uma encenação apaixonada, sempre. Então, ele não é um formalista idiota que se auto-masturba no que filma. A rigor, ele ama profundamente tudo o que está em cena, sobretudo os personagens. E é esse amor que faz mover a narrativa e não o virtuosismo ou a intriga (qual delas?). No documentário que antecede o filme Elogio ao Amor, Godard comenta, com suas palavras, que a câmera deve saber como receber o objeto.
100 anos antes, John Ford já sabia disso. Basta assistir Rastros de Ódio. Cada plano é uma meditação, não tanto sobre o "herói" amargo(como é sempre dito), mas principalmente sobre a conduta de saber acolher as coisas. Sempre do Monument Valley para a câmera, do contra-campo para o campo, do exterior para o interior,do fora para o dentro.
Não à toa o último plano do filme coloca John Wayne para fora desse espaço de aproximações (Walt Whitman no cinema), contrariando de maneira irônica toda forma de encenação do filme. O falso herói(anti-herói?) que não sabe muito bem como acolher o outro é expulso do quadro. E aceitar Debbie não o redime. Mas essa brilhante cena final torna-se emblemática de toda a obra (o acolhimento da moça que, índia ou não, só faz sentido por estar "dentro" do filme, da alma do "contador de histórias”, lembrando o Peixe\n Grande, de Tim Burton).
Esse recurso do “ponto de fuga pra dentro" faz todo o encanto da obra e torna até mesmo crítico o desfecho para o personagem de Wayne.
Rastros de Ódio é clássico, desde sempre!
Alessandro Coimbra

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